São Paulo, quinta-feira, 01 de novembro de 2001

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ERUDITO

Quarteto Talich, ou por que é bom ser platéia

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Que toda palavra é uma generalidade, se sabe. Mas a evidência é especialmente frustrante quando se quer encontrar um adjetivo, ou um verbo, ou um advérbio para "som de um quarteto de cordas". E não de qualquer quarteto: do Quarteto Talich, que tocou talichnianamente, que estalichnou um belo programa, terça-feira, no Espaço Cultural Promon.
Se quartetos fossem vinhos, o Talich seria um Borgonha. Quer dizer: mais aveludado e ao mesmo tempo mais distante do que os quartetos-Bordeaux. O som parece às vezes vir do fundo de si; certas nuances saltam à frente por um segundo, ou uma frase, depois voltam para sua intimidade ensolarada de outono.
Outono tcheco, tarde de maio, outono do poeta Rilke -que teria gostado muito da "Oración del Torero" do espanhol Joaquín Turina (1882-1949). Escrita originalmente para um quarteto de alaúdes, em 1925, a "Oración" tem o melhor de Turina, concentrado em oito minutos: harmonias espanholas, ritmos espanhóis, imagens de Espanha, tudo recriado com fineza, mesmo se sem muita originalidade. Fica na cabeça como um todo, as partes mais ou menos intercambiáveis, as melodias genericamente bonitas, o que nos livra de procurar adjetivos.
O melhor do Talich estava por vir. Só o "Quarteto K. 465" ("As Dissonâncias"), de Mozart (1756-91), já valeria a noite. A gravação desse quarteto pelo Talich tem mais medalhas do que cabem na capa do CD; ao vivo, é igual, mas diferente -toda a diferença do mundo, porque não há gravação que se compare a um minuto de música ao vivo.
Momento do "Andante": violoncelo (Petr Prause) travado numa figura, sobranceira e grave, os outros três em acordes que formam suspensões e resoluções. O círculo harmônico é conhecido, a saída, não. E Mozart chega ali a um daqueles estágios de intensidade máxima, com os meios mais fáceis.
E o vizinho, na cadeira ao lado, dormindo. Deus no palco; e ele dormindo.
O melhor do melhor estava por vir. Não é porque são da República Tcheca que eles têm de tocar Dvorák (1841-1904) tão bem. Mas tocam, e a sua versão do "Quarteto op. 96" ("Americano") fez da mistura de estilos uma combinação única. Brahms e os índios de Iowa de braços dados, felizes na tristeza e na sabedoria.
O ano de 97 foi uma grande safra para os Borgonhas e para o Quarteto Talich também. Foi o ano em que Jan Talich -descendente do maestro Talich (1883-1961), fundador da Filarmônica Tcheca- juntou-se ao grupo para tocar primeiro violino. Não qualquer violino: um J. Gagliano (Gagliano "luthier", não o das roupas).
Mozart gostava de Praga, que gostava de Mozart. Foi lá que estreou "Don Giovanni", em 1787. E essa triangulação ganhou um acento sintomático e simpático no bis, uma pequena peça minimalista de Michael Nyman (1944) -criador, aliás, do termo "minimalismo". Um rock para quarteto, a partir da "ária do catálogo" de Leporello. Pedaços da melodia vão-se somando aos poucos, sobre o motor de ré. Até que a melodia inteira aparece na viola: fim.
Tem gente que passa a vida assim. Tocando quartetos. E nós aqui, só de platéia. Mas é bom ser platéia numa noite dessas.


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