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ERUDITO
Quarteto Talich, ou por que é bom ser platéia
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Que toda palavra é uma generalidade, se sabe. Mas a
evidência é especialmente frustrante quando se quer encontrar
um adjetivo, ou um verbo, ou um
advérbio para "som de um quarteto de cordas". E não de qualquer
quarteto: do Quarteto Talich, que
tocou talichnianamente, que estalichnou um belo programa, terça-feira, no Espaço Cultural Promon.
Se quartetos fossem vinhos, o
Talich seria um Borgonha. Quer
dizer: mais aveludado e ao mesmo tempo mais distante do que os
quartetos-Bordeaux. O som parece às vezes vir do fundo de si; certas nuances saltam à frente por
um segundo, ou uma frase, depois voltam para sua intimidade
ensolarada de outono.
Outono tcheco, tarde de maio,
outono do poeta Rilke -que teria
gostado muito da "Oración del
Torero" do espanhol Joaquín Turina (1882-1949). Escrita originalmente para um quarteto de alaúdes, em 1925, a "Oración" tem o
melhor de Turina, concentrado
em oito minutos: harmonias espanholas, ritmos espanhóis, imagens de Espanha, tudo recriado
com fineza, mesmo se sem muita
originalidade. Fica na cabeça como um todo, as partes mais ou
menos intercambiáveis, as melodias genericamente bonitas, o que
nos livra de procurar adjetivos.
O melhor do Talich estava por
vir. Só o "Quarteto K. 465" ("As
Dissonâncias"), de Mozart (1756-91), já valeria a noite. A gravação
desse quarteto pelo Talich tem
mais medalhas do que cabem na
capa do CD; ao vivo, é igual, mas
diferente -toda a diferença do
mundo, porque não há gravação
que se compare a um minuto de
música ao vivo.
Momento do "Andante": violoncelo (Petr Prause) travado numa figura, sobranceira e grave, os
outros três em acordes que formam suspensões e resoluções. O
círculo harmônico é conhecido, a
saída, não. E Mozart chega ali a
um daqueles estágios de intensidade máxima, com os meios mais
fáceis.
E o vizinho, na cadeira ao lado,
dormindo. Deus no palco; e ele
dormindo.
O melhor do melhor estava por
vir. Não é porque são da República Tcheca que eles têm de tocar
Dvorák (1841-1904) tão bem. Mas
tocam, e a sua versão do "Quarteto op. 96" ("Americano") fez da
mistura de estilos uma combinação única. Brahms e os índios de
Iowa de braços dados, felizes na
tristeza e na sabedoria.
O ano de 97 foi uma grande safra para os Borgonhas e para o
Quarteto Talich também. Foi o
ano em que Jan Talich -descendente do maestro Talich (1883-1961), fundador da Filarmônica
Tcheca- juntou-se ao grupo para tocar primeiro violino. Não
qualquer violino: um J. Gagliano
(Gagliano "luthier", não o das
roupas).
Mozart gostava de Praga, que
gostava de Mozart. Foi lá que estreou "Don Giovanni", em 1787. E
essa triangulação ganhou um
acento sintomático e simpático
no bis, uma pequena peça minimalista de Michael Nyman (1944)
-criador, aliás, do termo "minimalismo". Um rock para quarteto, a partir da "ária do catálogo"
de Leporello. Pedaços da melodia
vão-se somando aos poucos, sobre o motor de ré. Até que a melodia inteira aparece na viola: fim.
Tem gente que passa a vida assim. Tocando quartetos. E nós
aqui, só de platéia. Mas é bom ser
platéia numa noite dessas.
Avaliação:
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