São Paulo, terça-feira, 01 de novembro de 2005

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Com relatos ficcionais sobre criminosos reais, "Sangue Ruim" revela a obra tortuosa do escritor e também pintor Joe Coleman

Pulp fiction

MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL

Tsunamis, furacões, tempestades, terremotos, gripe aviária. Todas as tragédias naturais que proliferaram nos últimos anos têm uma explicação lógica na visão do pintor e autor norte-americano Joe Coleman, 50. "A humanidade é como uma doença destruindo o planeta. Há muitos de nós, a natureza não quer mais membros de nossa espécie, então ela inventa diversas maneiras de se livrar de nós, além do envelhecimento. Por isso há também guerras e tanto ódio", explica ele, em entrevista à Folha, por telefone.
Profeta do apocalipse, xiita ecológico? Na verdade, Coleman se considera um retratista dos tempos atuais e é extremamente grato por viver nos dias de hoje. Um exemplo de sua extensa obra -que inclui pinturas, textos, filmes e performances- chegou ao Brasil recentemente pelo livro "Sangue Ruim" (ed. Conrad, 175 págs., R$ 25), coletânea de histórias de criminosos das mais diversas estirpes, ilustrada por suas pinturas detalhistas.
O livro retoma a tradição norte-americana de quadrinhos e contos inspirados em crimes reais, algo que remonta ao século 19 e que teve uma fase de ouro na década de 40. "Sangue Ruim" traz quatro desajustados -Jack Black, Bertha Vagão de Trem, Carl Panzram e John Paul Knowles- narrando em primeira pessoa (através de Coleman) suas vidas de crimes e mortes. "Sempre fui fascinado pelos "outsiders", porque é onde me encaixo no mundo. Quis contar as histórias a partir do ponto de vista deles, sem fazer julgamentos", define o autor.
Além de escrever-lhes a história, Coleman também ilustrou-lhes as principais passagens de suas vidas, construindo uma espécie de via-sacra herege, mas tão dolorosa quanto a original. A comparação religiosa não é descabida: foi através do catolicismo fervoroso de sua mãe que o pequeno Joe descobriu seu talento para a pintura -as imagens que via em igrejas (a crucificação, o açoite, os espinhos) inspiraram seus primeiros desenhos, aos oito anos: santos banhados em sangue e pessoas sendo queimadas.
A partir dessa iniciação artística prosaica, Coleman desenvolveu um talento incomum para chocar. Em 1963, aos 11 anos, incendiou o jardim de sua escola. Aos 17, começou a fazer uma série de "performances" que consistiam em amarrar inúmeros fogos de artifício ao corpo e acendê-los em público. Aos 21 entrou na Escola de Artes Visuais de Nova York, de onde foi expulso em alguns meses, sob a alegação de que seus quadros seriam ilustrações, não arte, e seriam fascistas.

Pintura e dor
"Um dia percebi que não havia muito futuro nessa coisa de colocar fogo em escolas e ficar me explodindo. Isso tudo, assim como meus trabalhos adolescentes, eram atos de comunicação. O sentimento de catarse que eu tinha com aquilo eu passei a transferir para minha pintura, fazendo um trabalho produtivo em vez de deixar meus sentimentos me destruírem. Canalizei tudo o que eu sentia, toda a necessidade de me expressar, nos quadros. É como usar a força destrutiva de um rio para gerar energia", compara.
De fato, foi com os quadros que Coleman passou a ganhar a vida, em vez de quase perdê-la com suas exibições. Com sua obra, veio o reconhecimento dos críticos (que o enquadraram na categoria "outsider art", qualificadora da obra de artistas com distúrbios mentais), um extenso fã-clube (que inclui figuras como o cineasta Jim Jarmusch, o ator Johnny Deep e o assassino Charles Manson) e uma fila de compradores que funciona em um sistema parecido com o patronato medieval.
"Eles me pagam antecipadamente, sem saber sobre o que vou pintar, apenas para que eu produza. Quando acabou um quadro, ele vai para a primeira pessoa da lista de espera. Se ela não quiser, vai para a próxima e assim por diante." O esquema se justifica pelo ritmo de produção de Coleman: apesar de pintar de uma maneira disciplinada -oito horas por dia, cinco dias por semana-, ele produz menos de cinco quadros por ano. Isso porque, além de pesquisar sobre o tema de suas pinturas (a maioria retratos de personalidades que vão do cantor country Hank Williams ao escritor Edgar Allan Poe) à medida que vai produzindo, cada uma de suas telas é recheada com uma quantidade de detalhes minúsculos que requerem um trabalho minucioso, uma lente de aumento e um pincel com um único fio.
"Pintar é um ato extremamente trabalhoso para mim. Tenho colocado cada vez mais detalhes em cada quadro, tento achar cada vez mais informação em cada mínima pincelada." O processo, além de lento, é doloroso: "É algo que eu preciso fazer, há um conceito de sacrifício envolvido nesse trabalho, mas é assim que tem que ser. O mundo é um lugar realmente assustador, então, para lidar com ele, eu preciso pintar, porque assim consigo controlá-lo, redefini-lo, ordená-lo".
Como ele mesmo define, num trocadilho em inglês, "I put the pain back in painting" (eu coloquei a dor de volta na pintura).


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