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Com relatos ficcionais sobre criminosos reais, "Sangue Ruim" revela a obra tortuosa do escritor e também pintor Joe Coleman
Pulp fiction
MARCO AURÉLIO CANÔNICO
DA REPORTAGEM LOCAL
Tsunamis, furacões, tempestades, terremotos, gripe aviária. Todas as tragédias naturais que proliferaram nos últimos anos têm
uma explicação lógica na visão do
pintor e autor norte-americano
Joe Coleman, 50. "A humanidade
é como uma doença destruindo o
planeta. Há muitos de nós, a natureza não quer mais membros de
nossa espécie, então ela inventa
diversas maneiras de se livrar de
nós, além do envelhecimento. Por
isso há também guerras e tanto
ódio", explica ele, em entrevista à
Folha, por telefone.
Profeta do apocalipse, xiita ecológico? Na verdade, Coleman se
considera um retratista dos tempos atuais e é extremamente grato
por viver nos dias de hoje. Um
exemplo de sua extensa obra
-que inclui pinturas, textos, filmes e performances- chegou ao
Brasil recentemente pelo livro
"Sangue Ruim" (ed. Conrad, 175
págs., R$ 25), coletânea de histórias de criminosos das mais diversas estirpes, ilustrada por suas
pinturas detalhistas.
O livro retoma a tradição norte-americana de quadrinhos e contos inspirados em crimes reais, algo que remonta ao século 19 e que
teve uma fase de ouro na década
de 40. "Sangue Ruim" traz quatro
desajustados -Jack Black, Bertha Vagão de Trem, Carl Panzram
e John Paul Knowles- narrando
em primeira pessoa (através de
Coleman) suas vidas de crimes e
mortes. "Sempre fui fascinado pelos "outsiders", porque é onde me
encaixo no mundo. Quis contar as
histórias a partir do ponto de vista
deles, sem fazer julgamentos", define o autor.
Além de escrever-lhes a história,
Coleman também ilustrou-lhes as
principais passagens de suas vidas, construindo uma espécie de
via-sacra herege, mas tão dolorosa quanto a original. A comparação religiosa não é descabida: foi
através do catolicismo fervoroso
de sua mãe que o pequeno Joe
descobriu seu talento para a pintura -as imagens que via em
igrejas (a crucificação, o açoite, os
espinhos) inspiraram seus primeiros desenhos, aos oito anos:
santos banhados em sangue e
pessoas sendo queimadas.
A partir dessa iniciação artística
prosaica, Coleman desenvolveu
um talento incomum para chocar. Em 1963, aos 11 anos, incendiou o jardim de sua escola. Aos
17, começou a fazer uma série de
"performances" que consistiam
em amarrar inúmeros fogos de
artifício ao corpo e acendê-los em
público. Aos 21 entrou na Escola
de Artes Visuais de Nova York, de
onde foi expulso em alguns meses, sob a alegação de que seus
quadros seriam ilustrações, não
arte, e seriam fascistas.
Pintura e dor
"Um dia percebi que não havia
muito futuro nessa coisa de colocar fogo em escolas e ficar me explodindo. Isso tudo, assim como
meus trabalhos adolescentes,
eram atos de comunicação. O
sentimento de catarse que eu tinha com aquilo eu passei a transferir para minha pintura, fazendo
um trabalho produtivo em vez de
deixar meus sentimentos me destruírem. Canalizei tudo o que eu
sentia, toda a necessidade de me
expressar, nos quadros. É como
usar a força destrutiva de um rio
para gerar energia", compara.
De fato, foi com os quadros que
Coleman passou a ganhar a vida,
em vez de quase perdê-la com
suas exibições. Com sua obra,
veio o reconhecimento dos críticos (que o enquadraram na categoria "outsider art", qualificadora
da obra de artistas com distúrbios
mentais), um extenso fã-clube
(que inclui figuras como o cineasta Jim Jarmusch, o ator Johnny
Deep e o assassino Charles Manson) e uma fila de compradores
que funciona em um sistema parecido com o patronato medieval.
"Eles me pagam antecipadamente, sem saber sobre o que vou
pintar, apenas para que eu produza. Quando acabou um quadro,
ele vai para a primeira pessoa da
lista de espera. Se ela não quiser,
vai para a próxima e assim por
diante." O esquema se justifica
pelo ritmo de produção de Coleman: apesar de pintar de uma maneira disciplinada -oito horas
por dia, cinco dias por semana-,
ele produz menos de cinco quadros por ano. Isso porque, além
de pesquisar sobre o tema de suas
pinturas (a maioria retratos de
personalidades que vão do cantor
country Hank Williams ao escritor Edgar Allan Poe) à medida
que vai produzindo, cada uma de
suas telas é recheada com uma
quantidade de detalhes minúsculos que requerem um trabalho
minucioso, uma lente de aumento e um pincel com um único fio.
"Pintar é um ato extremamente
trabalhoso para mim. Tenho colocado cada vez mais detalhes em
cada quadro, tento achar cada vez
mais informação em cada mínima pincelada." O processo, além
de lento, é doloroso: "É algo que
eu preciso fazer, há um conceito
de sacrifício envolvido nesse trabalho, mas é assim que tem que
ser. O mundo é um lugar realmente assustador, então, para lidar com ele, eu preciso pintar,
porque assim consigo controlá-lo, redefini-lo, ordená-lo".
Como ele mesmo define, num
trocadilho em inglês, "I put the
pain back in painting" (eu coloquei a dor de volta na pintura).
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