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LIVROS
Crítica/"Vertigem"
Em formidável obra de estréia, Sebald questiona a memória
Romance do autor alemão antecipa temas que ganharam
densidade em livros posteriores, como "Os Anéis de Saturno'
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
E
scritor tardio, somente
aos 46 anos W.G. Sebald publicou "Vertigem", seu primeiro romance
que, totalmente fora de ordem,
sai só agora no Brasil sucedendo livros mais recentes.
Assim, seu estilo nasceu sólido feito magma frio. Estilo não
significa pouco na curta obra
do alemão: autor de descrições
tão precisas quanto preciosas,
Sebald alcança com palavras (e
não são muitas, graças a sua fatura sóbria) o que o afresco
busca representar pictoricamente -imagens velozes em
que nuanças da cor são usadas
para transportar o leitor até as
paisagens descritas.
Sua literatura, porém, parece
questionar a veracidade de
lembranças contidas em imagens sempre fugidias.
Desde o início, em "Vertigem", a deambulação reflexiva
acompanhada de peregrinações (seus livros se assemelham muito a diários de viagens) conforma a estrutura episódica dessas histórias que
igualmente trafegam entre os
gêneros, com predominância
da pulsão ensaística a palpitar
na linguagem.
Aqui, principiamos por
acompanhar o jovem Henri
Beyle (o nome verdadeiro de
Stendhal) na travessia dos Alpes junto das tropas napoleônicas, em 1800. Por meio de seus
diários de campanha e também
dos posteriores, de viagens pela
Itália, Sebald começa a desdenhar do alcance da memória e
reconhece o irromper da fantasia naquela que seria a melhor
fase de Beyle, a da maturidade
pós-50 anos de idade.
Depois, vemos o próprio Sebald (em 1980) sobrevivendo a
uma severa depressão e transitando pelas mesmas cidades
italianas conhecidas por Beyle.
Lembrança
De início baseado no caos da
repetição e da rotina, esse peripatetismo culmina no reconhecimento das limitações da lembrança (não é sua primeira visita àqueles locais), nos detalhes
das pinturas e dos afrescos que
se deformam e nas impressões
que se distorcem com o tempo.
Pulamos então para uma
descrição da breve e infeliz passagem de Franz Kafka pela
mesma região em 1913 (e novamente os diários adquirem importância).
O salto, então, é dado para
1987, quando (depois de uma
ausência de 30 anos), Sebald
retorna à sua cidade-natal,
Wertach im Allgäu (referida
apenas com um misterioso
"W"), para tão-somente perceber, assim como Beyle ao
descobrir anos depois que sua
lembrança de juventude da cidade de Ivrea não era verdadeira, mas surgida da imagem
reproduzida num prospecto,
que não reconhece quase nada
e pior, que isto não tem mais
importância.
Tudo como na conhecida
anedota de Borges, que da mesma forma se entristecia por não
ter recordações verdadeiras
das coisas passadas, mas apenas recordações de recordações de recordações.
"Vertigem" é um formidável
primeiro livro que antecipa a
temática do autor alemão que
ganharia densidade em "Os
Anéis de Saturno", "Os Emigrantes" e "Austerlitz", seus livros posteriores.
Criador de obra tão desafortunadamente sucinta (ele morreu num acidente de automóvel em 2001) quanto fundamental, W.G. Sebald questiona
a frágil idéia de identidade da
vida humana no século 21.
JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de
"Sonho Interrompido por Guilhotina" (Casa da
Palavra)
VERTIGEM
Autor: W. G. Sebald
Tradução: José Marcos Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 41 (200 págs.)
Avaliação: ótimo
TRECHO
Pontualmente à uma e
quinze chegou o ônibus azul
que eu pretendia tomar para
Riva. Logo embarquei e me
sentei em um dos bancos de
trás. Alguns outros
passageiros também
subiram. Em parte gente da
região, em parte turistas como
eu. Pouco antes de o ônibus
partir, à uma e vinte e cinco,
embarcou um jovem de cerca
de quinze anos que guardava
a mais inquietante
semelhança que se pode
imaginar com as fotos de
Kafka quando estudante
adolescente. E, como se isso
não bastasse, o jovem tinha
ainda um irmão gêmeo que,
até onde pude constatar em
meu estado de perplexidade,
era igualzinho a ele, sem tirar
nem pôr. Em ambos o
contorno do couro cabeludo
avançava fundo na testa, e
tinham os mesmos olhos
escuros e sobrancelhas
espessas, as mesmas orelhas
grandes e desiguais, com
lóbulos grudados ao pescoço.
Estavam acompanhados dos
pais e tomaram assento ainda
mais atrás de mim. O ônibus
deu partida e desceu a Via
Cavour. Os galhos das árvores
alinhadas na avenida
roçavam o teto. Meu coração
pulou, e uma sensação de
vertigem se apoderou de mim
como costumava acontecer
na minha infância, quando
em qualquer viagem de carro
eu me sentia mal. Apoiei a
cabeça de lado na moldura da
janela, contra o vento, e
durante um longo tempo não
me atrevi a olhar ao redor.
Somente quando Salò havia
ficado bem para trás e nos
aproximávamos de
Gargnano, fui capaz de vencer
o medo em meus membros e
olhar para trás sobre o ombro.
Extraído de "Vertigem",
de W. G. Sebald
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