São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2001

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DRAUZIO VARELLA

A invenção da clonagem

"O mnia cellula e celula": toda célula vem de outra célula. Até o alemão Rudolf Wirchow dizer isso, em 1885, ninguém sabia que as células se dividiam em duas, quatro, oito, milhões, idênticas.
Sete anos mais tarde, outro alemão, Hans Driesch, ao ver um ovo de ouriço-do-mar dividir-se pela primeira vez e formar duas células-filhas, fez a seguinte pergunta: se essas primeiras células forem separadas, será que cada uma vai formar só a metade do embrião? Nesse caso, que metade será essa: a de baixo ou a de cima, a da esquerda ou a da direita?
Em 1892, com um estilete rudimentar de ponta microscópica, ele separou uma célula-filha da outra e observou que cada uma delas era capaz de dar origem ao embrião inteiro. Estava descoberto o princípio básico da clonagem.
Na década de 1900, os cientistas alemães -que dominavam o campo nessa época- demonstraram que a capacidade de formar o embrião sozinha não se restringia apenas às duas primeiras células, mantinha-se íntegra até o estágio embrionário de 16 ou 32.
Então, surgiu a próxima pergunta: em que parte da célula estaria armazenada a informação que lhe permite construir o embrião inteiro? A resposta foi obtida retirando o núcleo de uma das duas primeiras células-filhas e deixando intacto o da outra: a célula sem núcleo não era capaz de se dividir. Mas, se o núcleo fosse nela reintroduzido, a capacidade de divisão retornava. Estava claro: as ordens para a divisão celular partem do núcleo (lá estão contidos os genes, como sabemos hoje).
Um ano antes de começar a Segunda Guerra, Hans Speman fez uma pergunta que ele próprio definiu como "algo fantástica": será que o núcleo de uma célula de adulto retém o potencial das células embrionárias? Passaram-se 58 anos e nasceu a ovelha Dolly para provar que sim.
Veio a guerra, e o eixo da produção científica se deslocou para a América do Norte. Em 1962, John Gurdon retirou o núcleo de um óvulo de rã e nele introduziu um núcleo retirado de uma célula intestinal de sapo adulto. Foram clonados 20 sapos idênticos, que chegaram à vida adulta, com exceção de um deles, de tamanho pequeno e estéril. Estava respondida a pergunta, o núcleo de células adultas retinha o mesmo potencial das embrionárias.
Em 1977, o mesmo John Gurdon substituiu o núcleo do óvulo de uma rã preta pelo núcleo de uma célula adulta colhida de uma rã albina. Nasceram 30 rãs albinas como a doadora do material genético que lhes deu origem. O autor publicou na revista "Science" a foto das rãzinhas brancas dispostas com capricho em cinco colunas de seis indivíduos cada.
Foi um furor na imprensa leiga. A comparação com os seres humanos clonados na ficção de Aldous Huxley em "Admirável Mundo Novo", publicado em 1932, foi inevitável. Alimentou especulações na imprensa, furores religiosos, histórias literárias e roteiros cinematográficos: "A Clonagem de um Homem", de David Rorvik; "Meninos do Brasil", de Ira Levin; "A Clonagem de Joana May", de Fay Weldon, e outros.
Até os anos 1970, a clonagem era considerada fenômeno biológico de interesse apenas científico. Na década seguinte, no entanto, Steen Willadsen, conseguiu realizar 101 transferências de núcleos de células adultas para óvulos de vacas dos quais o núcleo havia sido previamente retirado. A clonagem batia às portas da pecuária.
Curiosamente, os bezerros assim nascidos apresentavam diversos defeitos congênitos. O mais frequente era o excesso de peso ao nascer, que causava dificuldades de parto e inviabilizava a aplicação comercial.
Em 1996, insensível aos fracassos anteriores no campo da clonagem de mamíferos, e graças à criatividade e persistência dos escoceses Ian Walmut (o de barba ruiva) e Keith Campbel, veio ao mundo a ovelha Dolly, depois de 277 tentativas de clonagem.
Nesta semana, uma empresa americana anunciou a obtenção de meia dúzia de células embrionárias a partir do núcleo retirado de células da pele de um homem, introduzido num óvulo de mulher, previamente anucleado. Segundo a empresa, o objetivo do experimento foi desenvolver um método para obter culturas de tecidos em laboratório que possam ser úteis nos transplantes e tratamentos de doenças hereditárias, infarto, cirrose, câncer, paralisia, Parkinson, demências da velhice e muitas outras.
Imediatamente ao anúncio, levantaram-se contra o experimento as vozes habituais dos religiosos, que enxergam na primeira divisão da célula-ovo o início sagrado da vida, e a dos políticos, guardiães da moralidade pública, prometendo proibir qualquer estudo sobre o tema.
A clonagem de células humanas não deve nem pode ser proibida. Seria um crime fazê-lo, porque retardaria os avanços inevitáveis que acontecerão nessa área. Adiantou a Santa Inquisição ameaçar Galileu Galilei de morte até ele jurar que tinha se enganado com a rotação da Terra? Por acaso a retratação fez o Sol girar em torno de nós?
Como qualquer procedimento médico, a clonagem precisa de leis claras, dizendo o que a sociedade permite e o que proíbe fazer. A legislação que rege os transplantes de órgãos é um bom exemplo: retirar o coração de um doador vivo, mas descerebrado, pode; matar alguém na rua para roubar-lhe o fígado é crime. Se a lei disser que clonar células humanas para tratamento médico é permitido, mas para clonar bebês não, estará tudo resolvido. Se for isso o que a sociedade deseja neste momento.


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