|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
A invenção da clonagem
"O mnia cellula e celula": toda célula vem de
outra célula. Até o alemão Rudolf
Wirchow dizer isso, em 1885, ninguém sabia que as células se dividiam em duas, quatro, oito, milhões, idênticas.
Sete anos mais tarde, outro alemão, Hans Driesch, ao ver um
ovo de ouriço-do-mar dividir-se
pela primeira vez e formar duas
células-filhas, fez a seguinte pergunta: se essas primeiras células
forem separadas, será que cada
uma vai formar só a metade do
embrião? Nesse caso, que metade
será essa: a de baixo ou a de cima,
a da esquerda ou a da direita?
Em 1892, com um estilete rudimentar de ponta microscópica,
ele separou uma célula-filha da
outra e observou que cada uma
delas era capaz de dar origem ao
embrião inteiro. Estava descoberto o princípio básico da clonagem.
Na década de 1900, os cientistas
alemães -que dominavam o
campo nessa época- demonstraram que a capacidade de formar
o embrião sozinha não se restringia apenas às duas primeiras células, mantinha-se íntegra até o
estágio embrionário de 16 ou 32.
Então, surgiu a próxima pergunta: em que parte da célula estaria armazenada a informação
que lhe permite construir o embrião inteiro? A resposta foi obtida retirando o núcleo de uma das
duas primeiras células-filhas e
deixando intacto o da outra: a célula sem núcleo não era capaz de
se dividir. Mas, se o núcleo fosse
nela reintroduzido, a capacidade
de divisão retornava. Estava claro: as ordens para a divisão celular partem do núcleo (lá estão
contidos os genes, como sabemos
hoje).
Um ano antes de começar a Segunda Guerra, Hans Speman fez
uma pergunta que ele próprio definiu como "algo fantástica": será
que o núcleo de uma célula de
adulto retém o potencial das células embrionárias? Passaram-se 58
anos e nasceu a ovelha Dolly para
provar que sim.
Veio a guerra, e o eixo da produção científica se deslocou para
a América do Norte. Em 1962,
John Gurdon retirou o núcleo de
um óvulo de rã e nele introduziu
um núcleo retirado de uma célula
intestinal de sapo adulto. Foram
clonados 20 sapos idênticos, que
chegaram à vida adulta, com exceção de um deles, de tamanho
pequeno e estéril. Estava respondida a pergunta, o núcleo de células adultas retinha o mesmo potencial das embrionárias.
Em 1977, o mesmo John Gurdon
substituiu o núcleo do óvulo de
uma rã preta pelo núcleo de uma
célula adulta colhida de uma rã
albina. Nasceram 30 rãs albinas
como a doadora do material genético que lhes deu origem. O autor publicou na revista "Science"
a foto das rãzinhas brancas dispostas com capricho em cinco colunas de seis indivíduos cada.
Foi um furor na imprensa leiga.
A comparação com os seres humanos clonados na ficção de Aldous Huxley em "Admirável
Mundo Novo", publicado em
1932, foi inevitável. Alimentou especulações na imprensa, furores
religiosos, histórias literárias e roteiros cinematográficos: "A Clonagem de um Homem", de David
Rorvik; "Meninos do Brasil", de
Ira Levin; "A Clonagem de Joana
May", de Fay Weldon, e outros.
Até os anos 1970, a clonagem
era considerada fenômeno biológico de interesse apenas científico.
Na década seguinte, no entanto,
Steen Willadsen, conseguiu realizar 101 transferências de núcleos
de células adultas para óvulos de
vacas dos quais o núcleo havia sido previamente retirado. A clonagem batia às portas da pecuária.
Curiosamente, os bezerros assim nascidos apresentavam diversos defeitos congênitos. O mais
frequente era o excesso de peso ao
nascer, que causava dificuldades
de parto e inviabilizava a aplicação comercial.
Em 1996, insensível aos fracassos anteriores no campo da clonagem de mamíferos, e graças à
criatividade e persistência dos escoceses Ian Walmut (o de barba
ruiva) e Keith Campbel, veio ao
mundo a ovelha Dolly, depois de
277 tentativas de clonagem.
Nesta semana, uma empresa
americana anunciou a obtenção
de meia dúzia de células embrionárias a partir do núcleo retirado
de células da pele de um homem,
introduzido num óvulo de mulher, previamente anucleado. Segundo a empresa, o objetivo do
experimento foi desenvolver um
método para obter culturas de tecidos em laboratório que possam
ser úteis nos transplantes e tratamentos de doenças hereditárias,
infarto, cirrose, câncer, paralisia,
Parkinson, demências da velhice
e muitas outras.
Imediatamente ao anúncio, levantaram-se contra o experimento as vozes habituais dos religiosos, que enxergam na primeira
divisão da célula-ovo o início sagrado da vida, e a dos políticos,
guardiães da moralidade pública,
prometendo proibir qualquer estudo sobre o tema.
A clonagem de células humanas
não deve nem pode ser proibida.
Seria um crime fazê-lo, porque retardaria os avanços inevitáveis
que acontecerão nessa área.
Adiantou a Santa Inquisição
ameaçar Galileu Galilei de morte
até ele jurar que tinha se enganado com a rotação da Terra? Por
acaso a retratação fez o Sol girar
em torno de nós?
Como qualquer procedimento
médico, a clonagem precisa de leis
claras, dizendo o que a sociedade
permite e o que proíbe fazer. A legislação que rege os transplantes
de órgãos é um bom exemplo: retirar o coração de um doador vivo, mas descerebrado, pode; matar alguém na rua para roubar-lhe o fígado é crime. Se a lei disser
que clonar células humanas para
tratamento médico é permitido,
mas para clonar bebês não, estará
tudo resolvido. Se for isso o que a
sociedade deseja neste momento.
Texto Anterior: Mário Souto Maior: "No Brasil, meu pai pagava para ser lido" Próximo Texto: Panorâmica - Arquitetura: Brasileiros ganham prêmio na Argentina Índice
|