|
Texto Anterior | Índice
NELSON ASCHER
O futuro a Deus pertence
Prever o futuro era, outrora, um ofício reservado a certos profissionais. Entre os antigos
gregos, romanos e celtas, arúspices examinavam, para tanto, as
entranhas de bichos recém-sacrificados, ornitomantes estudavam
o vôo e o canto dos pássaros, quiromantes liam as linhas das palmas da mão, oniromantes ou brizomantes interpretavam sonhos,
piromantes observavam o movimento das chamas etc. Os mesopotâmios, que preferiam a astrologia, perscrutavam o firmamento para elaborarem seus horóscopos e, há mais de 3.000 anos, antes mesmo de desenvolverem o "I-Ching", os chineses da dinastia
Shang deixavam no fogo omoplatas de animais ou cascas de tartaruga até que as rachaduras provocadas nestas pelo calor elucidassem suas dúvidas.
De todos os lugares frequentados pelos que desejavam desvendar o porvir, nenhum se tornou
tão célebre quanto o templo de
Delfos, na Grécia. Era em seu ádito, um santuário reservado à pitonisa, que esta, sob a influência
de vapores subterrâneos, recebia
as mensagens transmitidas por
Apolo a quem viesse consultá-lo.
As revelações do oráculo costumavam ser convenientemente
ambíguas. O grande exemplo é o
de Creso, rei da Lídia, que, perguntado se deveria invadir ou
não a Pérsia, interpretou de forma algo otimista a frase segundo
a qual, terminada a guerra, um
poderoso reino cairia: foi seu reino o que caiu. Essa lenda inspirou
Shakespeare a pôr na boca das
bruxas que instigam Macbeth a
tomar o poder na Escócia o verso
("When the battle's lost and
won") que fala de uma batalha
perdida e ganha: perdida por um
contendor, ganha pelo outro.
O problema óbvio de qualquer
previsão insuficientemente dúbia
é que, salvo se disser respeito a um
futuro longínquo, ela corre o risco
de ser verificada e, em geral, desmentida. Não é por isso, no entanto, que só resta atualmente
aos adivinhos de carreira oferecerem seus serviços a cônjuges desamados, doentes desenganados e
empresários falidos, pois, afinal, o
homem moderno, urbano e pós-graduado continua tão supersticioso quanto o que viveu durante
a última glaciação. Acontece que,
quando o que está em jogo são
questões mais amplas, como as de
natureza social, econômica ou
política, as ciganas e as cartomantes, vítimas da concorrência
desleal, foram substituídas por
gente que, conhecendo o futuro
como a palma da mão de um maneta, maneja estatísticas e pesquisas variadas como um bebê,
uma kalashnikov.
Nunca na história das conflagrações humanas tantos peritos
desinformaram tantos leigos com
tantas interpretações enviesadas
e predições absurdas. Se Stanislaw Ponte-Preta estivesse vivo, ele
teria, após 11 de setembro de 2001,
de abrir concurso público para
contratar uma legião de auxiliares, porque sozinho não conseguiria dar conta do atual "Febeaplá"
(Festival de Besteiras que Assola o
Planeta). Assim, mal os EUA
principiaram sua campanha na
Ásia Central, já sobravam entendidos não somente lembrando
que a região havia sido o túmulo
dos exércitos inglês e soviético,
mas acenando com o devastador
inverno afegão. (Curiosamente,
nenhum deles anteviu o desastroso verão parisiense.) Quanto ao
Iraque, comentadores diversos
asseguraram que os americanos
não desafiariam o veto de países
interessados em preservar seus investimentos e antigas amizades.
Traídos por Bush, eles garantiram em seguida que os iraquianos repeliriam heroicamente as
tropas ianques, Bagdá se converteria numa nova Stalingrado inconquistável e milhões de inocentes morreriam na maior catástrofe humanitária desde o dilúvio bíblico. Seu mantra atual é o de que
a coalizão anglo-australo-americana se atolou num Vietnã renovado e este, desmoralizando (juntamente com uma economia falida) os republicanos, levará em
breve à Casa Branca um democrata que terá o bom senso de
submeter sua nação aos ditames
da burocracia européia e onusiana. Veremos.
Mas talvez não seja apenas um
caso de pessoas projetando, nos
dias, meses e anos vindouros, sua
incompreensão do presente e seu
desconhecimento do passado. Se
há um vício que sobretudo os especialistas em política internacional têm se mostrado incapazes de
superar, este é o que os ingleses
chamam de "wishful thinking",
Antônio Houaiss traduz poeticamente por "pensamento veleitário" e, trocando em miúdos, consiste em identificar os próprios desejos com a realidade ou, como
diria Luigi Pirandello, "assim é,
se lhe parece". Apesar de o paradigma mesmo com que se interpretavam as relações internacionais ter mudado, aqueles que investiram tempo de sobra e, quem
sabe, alguns neurônios em concepções agora obsoletas não estão, compreensivelmente, dispostos a recomeçar do zero.
Nada colabora mais com tal resistência paralisadora do que a
apatia de um público que, não
obstante dispor da internet e ter
acesso à blogosfera, prefere poupar dissabores aos especialistas,
raramente lhes colocando perguntas embaraçosas como: "Por
que nenhuma de suas recentes
previsões se confirmou?" Em épocas mais sérias os falsos profetas
eram apedrejados. Os contemporâneos, contudo, passam por bravos dissidentes. E, enquanto eles
se ocupam do porvir, quem busca
entender o presente desempenha
um papel de Cassandra, a mais
bela filha de Príamo, rei de Tróia,
que oferecera seus favores a Apolo
em troca do dom da profecia. Como o deus, pagando adiantado,
não recebeu a mercadoria prometida, ele puniu a moça condenando-a a profetizar sem ser ouvida.
O que mudou desde então? Hoje
em dia quase ninguém quer acreditar não em previsões, mas nos
fatos.
Texto Anterior: Frase Índice
|