São Paulo, quarta-feira, 01 de dezembro de 2004

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MARCELO COELHO

Com 1 milhão de pteridófitas

Leio estranhas frases na revista "IstoÉ" desta semana. Por exemplo: "No dina vit do de Abinu d doni come kicna do no ba Basinu terã mlazsa". É o que escreveu um aluno de escola pública numa prova de ditado. A frase correta era: "No dia 22 de abril, comemoramos os 500 anos do Brasil, que é uma terra maravilhosa".
Esse foi, em maio de 2000, o teste aplicado pela revista em dezenas de estudantes de escolas municipais e estaduais na Grande São Paulo e numa cidade próxima a Belo Horizonte. Neste ano, o jornalista Gilberto Nascimento voltou à carga, com frase parecida, e obteve resultados igualmente desanimadores: "Modia 22 deabi coneroso o deco Bazi, cietera naraiza". O menino que escreveu isso tem 12 anos de idade e está na quarta série.
Como sabemos, esses alunos passam de ano automaticamente, dado o sistema da "progressão continuada". O efeito é que terminam perdidos dentro da sala de aula: tanto em 2000 como agora, o repórter registra que, submetidos ao teste, alguns alunos acabam chorando de vergonha.
Tento decifrar os garranchos de um aluno de oitava série em Guarulhos, reproduzidos na revista. Tratava-se de uma prova de estudos sociais, imagino, com perguntas bastante exigentes. "Qual a relação entre o trabalho informal e o déficit da Previdência?" Resposta do estudante: "Previdesipodia judaotrabalado".
Não estamos mais, evidentemente, diante daquelas divertidas "pérolas" que se colecionam nas provas de candidatos ao vestibular e que volta e meia aparecem na imprensa ou na internet. Outra pergunta: "Explique por que o economista Jorge Mattoso afirma que a empregabilidade (escolaridade), em si, não cria emprego". Resposta: "Imbhegasinavida paraviker conobarfamc".
É quase o grito de desespero, o pedido de socorro de um animal aprisionado, com quem ridiculamente um cientista britânico, no estilo de Mr. Magoo, estivesse tentando entabular uma conversa. Espero que não haja desprezo nessa comparação. Penso menos na ignorância vivida por esses alunos do que no seu sofrimento. Ano após ano, por mais de uma década, estão obrigados a freqüentar a escola, entendendo cada vez menos o que se passa, detestando o que vêem, sentindo-se humilhados, excluídos e, claro, querendo vingar-se e fugir de tudo.
Claro que não estão acorrentados à carteira, mas do ponto de vista subjetivo sua situação não será muito diferente daquela de um presidiário. Que se entreguem ao vandalismo ou à droga, por exemplo, não é a mais extrema das reações possíveis.
Passo agora aos estudantes da nossa privilegiada classe média e também sinto pena. Sempre dou uma olhada, quando chega esta época do ano, nas questões que são pedidas no vestibular. Haverá coisa mais massacrante, mais injusta, mais contraproducente, mais emburrecedora do que esse sistema de seleção?
Pelo que sei, fica cada vez mais difícil entrar em cursos como os de filosofia, letras, ciências sociais... para não falar de jornalismo, teatro, artes plásticas. Posso estar sendo tendencioso ao tomar as dores dos candidatos a esse tipo de curso, com os quais tenho afinidade, mas por que um vestibulando de direito ou medicina seria forçado a conhecer tanto de geometria analítica ou de química orgânica?
No meu tempo, o vestibular já condensava uma série de exigências descabidas, mas a concorrência para os cursos de humanas não era tão alta. Hoje em dia, para quem quiser freqüentar um curso de cinema, pode ser decisivo saber a diferença entre uma pteridófita e uma briófita; e a carreira de um futuro advogado poderá depender de distinguir entre o polimetacrilato de metila e o politetrafluoroetileno. Estou citando duas questões do vestibular da Fuvest deste ano.
Nada contra o ensino de ciências e a necessidade de treinar-se o pensamento lógico: a grande maioria dos seres humanos, mesmo se vocacionados à crítica literária ou ao desenho de moda, pode responder bem a esses assuntos. Não fosse assim, livros de Carl Sagan, Marcelo Gleiser ou Stephen Jay Gould seriam um fracasso total. Por que não adotá-los no vestibular, em vez de obrigar o aluno a um treinamento exaustivo, estéril e frustrante na resolução de problemas em que não enxergam nenhum sentido?
Deve haver muitas respostas. Não excluo a do sadismo: há prazer em aborrecer aqueles que nos aborrecem, há sempre a vontade de reprimir a alegria de quem é mais jovem do que nós. "O que esses adolescentes estão pensando? Que a vida é ficar na balada, andando de skate etc.? Ah, aqui vai um probleminha daqueles, para que vejam o que é bom." Cito mais uma questão do vestibular, suprimindo a figura que a acompanha.
"Uma jovem está parada em A, diante de uma vitrine, cujo vidro, de 3 m de largura, age como uma superfície refletora plana vertical. Ela observa a vitrine e não repara que o amigo, que no instante t-0 está em B, se aproxima, com velocidade constante de 1 m/s, como indicado na figura, vista de cima. Se continuar observando a vitrine, a jovem poderá ver a imagem do amigo, refletida no vidro, após um intervalo de tempo, aproximadamente, de: a) 2s; b) 3s; c) 4s; d) 5s; e) 6s.?"
Depois reclamamos dos adolescentes.
Provavelmente, a "jovem" não enxergará amigo nenhum depois de qualquer um desses "intervalos de tempo". Estará completamente doida de maconha, e o amigo, antes que ela se dê conta, já terá quebrado a vitrine com um taco de beisebol.


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