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Livros - Crítica/"João Saldanha
Uma Vida em Jogo" Biografia retrata com fluência as várias vidas de Saldanha
Autor vai além do anedotário em livro sobre o comentarista, jornalista e treinador que montou a seleção brasileira de 1970
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
É difícil imaginar uma
personalidade mais
marcante, rica e contraditória do que a de João Saldanha (1917-1990). Mais difícil
ainda é encontrar alguém que
tenha perpassado tantas camadas da vida política e cultural
brasileira no século 20.
Comentarista esportivo mais
popular do país nos anos 60 e
70, jornalista que cobriu a Segunda Guerra Mundial e a
Grande Marcha de Mao Tse-tung, treinador que montou a
seleção brasileira de futebol
campeã mundial de 1970, Saldanha foi também um ativo militante comunista.
Envolveu-se em greves urbanas e guerrilhas rurais, viveu
clandestinamente sob nomes
falsos, foi preso inúmeras vezes, espancado e baleado. Mas
deu seus sopapos e tiros também, por motivos mais pessoais
do que políticos.
Da infância em Alegrete (RS),
em que brincava de mocinho
com o irmão Aristides usando
armas de verdade, às brigas
com o presidente-general Médici, quando era técnico da seleção, foi uma vida vivida sob o
signo da paixão e do confronto,
como mostra fartamente a caudalosa biografia "João Saldanha: Uma Vida em Jogo", do
jornalista André Iki Siqueira.
Ancorado numa extensa pesquisa e nos depoimentos de
amigos, parentes e inimigos, o
biógrafo vai além do inesgotável anedotário em torno de Saldanha, procurando extrair das
várias versões sobre seus feitos
mais célebres e das revelações
sobre seus aspectos mais ocultos a imagem viva de um personagem cheio de arestas.
Alguns episódios cruciais
não ganham uma elucidação
"definitiva", mas são iluminados sob todos os ângulos possíveis. Siqueira sabe que nenhuma memória é confiável e que
não existe "a verdade", e sim
verdades parciais, provisórias,
construídas.
Assim, continuamos sem saber exatamente qual foi o motivo da demissão de Saldanha do
comando da seleção brasileira,
às vésperas da Copa para a qual
ele classificara a equipe com
uma campanha brilhante. Mas
o quadro todo é dado em detalhes: o comunista Saldanha ganhara uma popularidade inaudita e aproveitava a visibilidade
do cargo para denunciar à imprensa estrangeira as prisões,
torturas e desaparecimentos
políticos. Cada vez mais vigiado
e pressionado, o treinador sentia-se desconfortável ao servir a
um governo que matara ou banira muitos de seus amigos.
Em vista disso, qualquer pretexto serve para explicar a ruptura: uma desavença do técnico
com Pelé; a invasão da concentração do Flamengo por um
Saldanha armado de revólver
para ameaçar o treinador Yustrich, seu desafeto; seu pretenso abuso de bebida; a recusa em
convocar o jogador Dario, como queria o presidente Médici.
Ou tudo isso junto.
Lances inacreditáveis, engraçados e comoventes, articulados com fluência narrativa pelo
biógrafo, compõem um João
Saldanha generoso, autoritário,
apaixonado, arguto, grosseiro,
provinciano, elegante -em suma, humano, demasiado humano. Dele se poderia dizer,
como no verso de Mário Faustino: "Tanta violência, mas tanta
ternura".
JOÃO SALDANHA: UMA VIDA EM JOGO
Autor: André Iki Siqueira
Editora: Companhia Editora Nacional
Quanto: R$ 64 (552 págs.)
Avaliação: ótimo
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