São Paulo, sábado, 01 de dezembro de 2007

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Livros - Crítica/"João Saldanha

Uma Vida em Jogo" Biografia retrata com fluência as várias vidas de Saldanha

Autor vai além do anedotário em livro sobre o comentarista, jornalista e treinador que montou a seleção brasileira de 1970

JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA

É difícil imaginar uma personalidade mais marcante, rica e contraditória do que a de João Saldanha (1917-1990). Mais difícil ainda é encontrar alguém que tenha perpassado tantas camadas da vida política e cultural brasileira no século 20.
Comentarista esportivo mais popular do país nos anos 60 e 70, jornalista que cobriu a Segunda Guerra Mundial e a Grande Marcha de Mao Tse-tung, treinador que montou a seleção brasileira de futebol campeã mundial de 1970, Saldanha foi também um ativo militante comunista.
Envolveu-se em greves urbanas e guerrilhas rurais, viveu clandestinamente sob nomes falsos, foi preso inúmeras vezes, espancado e baleado. Mas deu seus sopapos e tiros também, por motivos mais pessoais do que políticos.
Da infância em Alegrete (RS), em que brincava de mocinho com o irmão Aristides usando armas de verdade, às brigas com o presidente-general Médici, quando era técnico da seleção, foi uma vida vivida sob o signo da paixão e do confronto, como mostra fartamente a caudalosa biografia "João Saldanha: Uma Vida em Jogo", do jornalista André Iki Siqueira.
Ancorado numa extensa pesquisa e nos depoimentos de amigos, parentes e inimigos, o biógrafo vai além do inesgotável anedotário em torno de Saldanha, procurando extrair das várias versões sobre seus feitos mais célebres e das revelações sobre seus aspectos mais ocultos a imagem viva de um personagem cheio de arestas.
Alguns episódios cruciais não ganham uma elucidação "definitiva", mas são iluminados sob todos os ângulos possíveis. Siqueira sabe que nenhuma memória é confiável e que não existe "a verdade", e sim verdades parciais, provisórias, construídas.
Assim, continuamos sem saber exatamente qual foi o motivo da demissão de Saldanha do comando da seleção brasileira, às vésperas da Copa para a qual ele classificara a equipe com uma campanha brilhante. Mas o quadro todo é dado em detalhes: o comunista Saldanha ganhara uma popularidade inaudita e aproveitava a visibilidade do cargo para denunciar à imprensa estrangeira as prisões, torturas e desaparecimentos políticos. Cada vez mais vigiado e pressionado, o treinador sentia-se desconfortável ao servir a um governo que matara ou banira muitos de seus amigos.
Em vista disso, qualquer pretexto serve para explicar a ruptura: uma desavença do técnico com Pelé; a invasão da concentração do Flamengo por um Saldanha armado de revólver para ameaçar o treinador Yustrich, seu desafeto; seu pretenso abuso de bebida; a recusa em convocar o jogador Dario, como queria o presidente Médici. Ou tudo isso junto.
Lances inacreditáveis, engraçados e comoventes, articulados com fluência narrativa pelo biógrafo, compõem um João Saldanha generoso, autoritário, apaixonado, arguto, grosseiro, provinciano, elegante -em suma, humano, demasiado humano. Dele se poderia dizer, como no verso de Mário Faustino: "Tanta violência, mas tanta ternura".


JOÃO SALDANHA: UMA VIDA EM JOGO
Autor:
André Iki Siqueira
Editora: Companhia Editora Nacional
Quanto: R$ 64 (552 págs.)
Avaliação: ótimo


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