São Paulo, terça-feira, 01 de dezembro de 2009

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O bom do cara do 'maus'

Art Spiegelman, único cartunista premiado com o Pulitzer, fala sobre o melhor de sua obra, que sai em "Breakdowns"

Sean Gallup - 14.abr.08/Getty Images
Capa histórica que fez para a ‘New Yorker’, sobre o 11 de Setembro

RAQUEL COZER
DA REPORTAGEM LOCAL

Art Spiegelman desconstrói para poder construir. O cartunista vem usando esse método desde o fim dos anos 60, quando surgiu no cenário underground dos EUA, para provar aos incrédulos que HQs são, sim, uma forma de arte.
O empenho lhe garantiu, em 1992, um inédito prêmio Pulitzer para um quadrinista, por sua obra "Maus", em que relata a história de seus pais em campos de concentração nazistas.
Boa parte desse trabalho de dissecar os quadrinhos pode ser vista em "Breakdowns: Retrato do Artista Quando Jovem %@&*!", que ganha caprichada edição da Quadrinhos na Cia.
Original de 1978, com os primeiros esboços de Spiegelman, o livro sai agora com extensa introdução, também ilustrada, em que ele analisa sua carreira. Por telefone à Folha, de Nova York, onde vive, Spiegelman, 61, falou sobre a HQ como terapia, a dificuldade em desenhar e a "sombra" de "Maus".

 

FOLHA - "Breakdowns" analisa as HQs como arte, mas também é bem autobiográfica. Serve como terapia?
SPIEGELMAN
- Olha, tentei terapia, é mais caro e é meio diferente. Tenho uma analogia horrível, mas não penso em nada melhor, que é: terapia envolve vomitar as coisas, quadrinhos é mais como engolir o vômito. É preciso vomitar antes de fazer algo com isso. Mas, sim, ambos envolvem autoanálise.

FOLHA - Pode-se dizer que a autoanálise é menos central que o fato de o sr. ver boas histórias na sua vida?
SPIEGELMAN
- Sim, acho que até mais isso. Quando fiz "Maus", pensei: "Seria ótimo fazer uma HQ com a densidade que se associasse a literatura séria". Fiz aquela versão de três páginas [que está em "Breakdowns"] e pareceu desperdício, porque era uma história para contar. Trabalhei em "Breakdowns" nos anos anteriores à versão em livro de "Maus". Estava bem pouco interessado na história em si e mais no modo como imagem e texto se encaixam. Por isso "Breakdowns" é tão difícil, ele requer foco, diferente de "Maus". "Maus" narra alguma coisa, mostra as forças em jogo numa trama complexa.

FOLHA - A nova introdução de "Breakdowns" mostra o sr. tentando fugir da sombra de "Maus". É ironia ou isso de fato o incomoda?
SPIEGELMAN
- É irônico e me incomoda. Por um lado, gostaria que falassem: "Puxa, o que você está fazendo agora é fantástico". Mas é claro que, quando fiz "Maus", fiz o que no rock chamam de "crossover hit", capaz de atrair inclusive quem não liga para HQs. Sou grato a "Maus" porque, depois dela, foi possível publicar minhas HQs mais difíceis. Não que "Maus" seja fácil, mas é difícil de modo diferente. Ali, para tornar claro algo complexo, tive de suprimir coisas interessantes, como a corrente de consciência do meu pai contando a história. Deixei isso de fora para que não ficasse muito joyceano. O fato é que a maioria dos cartunistas que conheço, inclusive eu, têm certa inveja de "Maus" [risos].

FOLHA - "Breakdowns" cita o artista Rodolphe Topffer sobre a ideia de que cartunistas "desenham mal, mas têm certo talento para escrita" ou "escrevem de forma medíocre, mas têm belo estilo de desenho"...
SPIEGELMAN
- Se tivesse uma tatuagem -sou contra ter tatuagens, porque ouvi que em Auschwitz eles transformavam as peles tatuadas em abajures; deve ser só rumor-, enfim, se tivesse uma frase tatuada, seria essa de Topffer, a coisa da existência entre dois lugares. Há quem compare HQ com literatura ou artes visuais, mas o cartunista fica entre as duas zonas e tem de equilibrá-las para que funcione. É um espaço híbrido, que exige dois dons. Embora grandes cartunistas possam ser péssimos desenhistas ou péssimos escritores.

FOLHA - O sr. acha que é melhor desenhista ou escritor?
SPIEGELMAN
- Escrever é mais fácil para mim, desenhar é sempre uma luta. Quando desenho num guardanapo, por exemplo, é fácil. Mas, quando tento fazer algo específico, é um desafio. No ano passado, saiu nos EUA minha coleção de esboços "Be a Nose" [seja um nariz], que é uma frase de um filme obscuro de Roger Corman, "Bucket of Blood" [balde de sangue], sobre um cara que tem inveja dos artistas que pegam todas as garotas. A certa altura, ele começa a socar um monte de argila, dizendo: "Seja um nariz, seja um nariz!". Ok, depois ele passa a matar pessoas para usá-las como esculturas, mas, para mim, aquele momento em que o cara soca a massa e diz "seja um nariz", isso é ser um cartunista.

FOLHA - E o sr. faria um romance?
SPIEGELMAN
- [pausa] Não. Às vezes, escrevo ensaios. Até agora, nunca tive satisfação com nenhuma ficção que tenha escrito. Eu me interesso demais em desconstruir as coisas para pensar em construir algo.

FOLHA - Quando criou a capa do 11 de Setembro para "New Yorker", imaginou que seria antológica?
SPIEGELMAN
- Me pareceu a resposta certa. E, mesmo quando a encontrei, não reconheci. Minha mulher [Françoise Mouly, editora de arte da "New Yorker"] foi quem disse: "Essa é a capa". Agora olho para trás e penso: "Ok, foi um daqueles momentos transcendentais".

FOLHA - Com que frequência o sr. cria quadrinhos hoje em dia?
SPIEGELMAN
- Não trabalho com prazos. Se tento me expressar bem, demora. Não sou prolífico como meu colega Paul Auster, que lança um livro a cada ano...


BREAKDOWNS

Tradução: Vanessa Barbara
Editora: Quadrinhos na Cia.
Quanto: R$ 79 (312 págs.)




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