São Paulo, sexta-feira, 02 de janeiro de 2004

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CINEMA

"EM CARNE VIVA"

Recheado de cenas de sexo, filme é protagonizado por Meg Ryan

"Filmei o pior pesadelo dos estúdios", diz Jane Campion

FLORENCE COLOMBANI
DO "LE MONDE"

"Em Carne Viva", sexto longa da neozelandesa Jane Campion ("O Piano"), que tem estréia prevista para 26 de março no Brasil, é daqueles filmes que o público comenta, mesmo antes de ver.
Produzido pela estrela norte-americana Nicole Kidman -que também o protagonizaria, mas desistiu do papel-, acabou tendo Meg Ryan como atrativo principal. A "namoradinha da América" surge, pela primeira vez em sua carreira, em cenas de nudez e sexo despudorado. Na entrevista a seguir, Campion comenta esse e outros aspectos de seu filme.

Pergunta - Como a sra. descobriu o romance de Susanna Moore, "In the Cut", no qual o filme se baseia?
Jane Campion -
Uma amiga me emprestou, eu o devorei sem pensar em transformá-lo num filme. O projeto de adaptá-lo não foi meu, mas de Nicole Kidman, que queria que trabalhássemos juntas. Eu me entusiasmei com a idéia.
Foi meu primeiro roteiro baseado em um livro. Abordei o trabalho com grande ingenuidade, sem levar as dificuldades em conta. Na leitura, tudo corre da fonte, a narradora veicula a atmosfera, o tom... Ela transmite suas emoções diretamente ao leitor. Com um filme, é mais complicado.
Demorei a renunciar ao uso de narração em off e me custou abandonar diversos personagens secundários. O bloqueio se resolveu quando decidi me concentrar em Frannie, a protagonista.

Pergunta - A sra. decidiu manter o título do livro, "In the Cut"...
Campion -
Sim, é uma expressão que explica claramente do que trata o filme: a sexualidade feminina. Frannie é professora, especialista em gíria. Tem um comportamento contido, mas se interessa pelos componentes violentos e sexuais da linguagem. No livro, há muitas expressões imaginosas para designar o sexo da mulher. Não pude usar todas.

Pergunta - Como o papel passou de Nicole Kidman para Meg Ryan?
Campion -
Quando Nicole não pôde fazer o filme, porque estava ocupada com outros projetos, pensei em Meg Ryan, que adorou o roteiro. Ela é conhecida pelas comédias românticas em que interpreta mulheres suaves, sorridentes, sem dimensão carnal... O exato oposto de Frannie.
Uma atriz associada a papéis audaciosos na representação da sexualidade não seria crível. O que era preciso era ver essa mulher se abandonar a um homem e à obsessão sexual pela primeira vez. Meu modelo era Jane Fonda, em "Klute - O Passado Condena".
Antes daquele papel, ela só mostrara seu lado bonzinho. Por outro lado, dar o papel a uma atriz de uma certa idade abria possibilidades. Frannie teve tempo para sofrer mais, para ser mais marcada pela vida, para se sentir um pouco mais desesperada.
Em "O Piano" e "Retrato de uma Mulher", tratava-se de mulheres jovens descobrindo sua sensualidade... Aqui, o motivo é o mesmo, mas com variações, e se trata de uma mulher madura. Isso posto, Frannie não é virgem no começo da história! Ela simplesmente passou por grandes decepções, nunca encontrou nas relações com os homens aquilo que esperava. Trata-se de uma personagem que se afasta do mundo.
O encontro com Malloy (Mark Ruffalo) a perturba: eis um homem sincero, direto. Isso atrapalha suas abordagens românticas, ele não tem discurso sentimental, é imprevisível. E é completamente confiante no plano físico, o que a aterroriza e excita.

Pergunta - Essa intriga íntima foi filmada em locação, com uma atmosfera urbana sufocante. A sra. tinha referências em mente para filmar Nova York?
Campion -
Consultei o trabalho de inúmeros fotógrafos. Nan Goldin era uma de minhas referências pessoais, mesmo se os amigos que ela fotografava naquelas noitadas particulares fossem bem mais audazes do que Frannie. Na verdade, há algo de sombrio e trágico na intimidade daquelas pessoas, que me inspirou muito.
No plano do estilo, queria que o filme se assemelhasse aos dos anos 70, de Friedkin e Scorsese... Pensei em "Taxi Driver", por exemplo, aquele lado sombrio e ameaçador de Nova York... mesmo que o meu filme fosse um pouco mais romântico.
Nova York é uma cidade apaixonante, no plano cinematográfico, porque é multiforme e fundamentalmente impossível de dominar ou mesmo de conhecer. É um tema móvel. A família de Nick Damici, que interpreta o inspetor Rodriguez, tinha um bar em Hell's Kitchen, e ele conhece muito os aspectos sombrios da cidade, o que nos beneficiou. Adoramos os filmes clássicos de gângster, mas era preciso uma abordagem um pouco mais moderna quanto à cidade, deixar Mulberry Street de lado.
Entre o começo e o final da filmagem, a cidade mudou enormemente, porque estávamos rodando na época do 11 de Setembro. A história de Nova York é a da luta de milhões de pessoas para sobreviver. Há uma energia e um desespero que alimentam os filmes rodados na cidade.

Pergunta - Que lugar a sra. ocupa no sistema de Hollywood?
Campion -
Estranhamente, mesmo que meu financiamento venha de lá há algum tempo, só rodei um filme nos Estados Unidos, esse último. Os outros se passam na Austrália ou Nova Zelândia, ou na Europa.
"Em Carne Viva" tem um ar muito americano e se passa em Nova York, mas o financiamento é em parte francês. De modo geral, o sistema e eu temos objetivos bem diferentes. Quero renovar minha abordagem de filme a filme, e eles esperam de mim, a priori, que reproduza o sucesso de "O Piano", de alguma maneira.
Quando eu não era mais que uma espectadora, nos anos 70, parecia haver mais liberdade, mais experimentação no cinema. Tento preservar em mim esse espírito, e as exigências dos estúdios me são indiferentes.
Talvez seja uma particularidade de mulher cineasta, não sei, mas meu ritmo é muito lento, não estou em uma corrida pelo poder, não me sinto obrigada a ganhar Oscars. Tenho uma vida, uma filha, outras coisas a fazer.
O que me dá poder com relação aos estúdios é que muitas estrelas querem trabalhar comigo e aceitam fazê-lo quase de graça. Creio que eu seja bastante irritante aos olhos deles. "Em Carne Viva" é o pior pesadelo dos estúdios -um filme que fala de sexo, um thriller onde o suspense é menos importante do que a evolução psicológica dos personagens.


Tradução Paulo Migliacci

Com Reportagem Local


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