São Paulo, sexta-feira, 02 de janeiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Cena em Paris com Chantal

A garoa parou de repente. Pensando bem, tudo começava a acontecer de repente. Até o sol que furou as nuvens e iluminou o rio, as árvores, as calçadas, a massa cinzenta da Notre Dame. A cartinha do corcunda comunicando, "mamãe, arranjei hoje um bom emprego, o de sineiro...". Era a primeira vez que via o sol em Paris. Um pedaço pequenino de céu azul, um fiapo limpo, muito azul e fundo. Chantal disse que o sol trazia mais frio.
- Como é, melhorou?
Não tinha melhorado, continuava enjoado, como se nada tivesse importância, só eu. Eu umbigo, eixo e flecha do universo. Depois sim, vinha o resto, Chantal, o rio, Notre Dame. Acho que disse isso para ela.
- Não vá assim com tanta pressa. É coisa de estreante. Antes de fumar, você já se sentia o centro do mundo, o núcleo do universo. Só que, agora, você vai sentir fisicamente que o mundo começa em você... Compreende?... Começa, mas também acaba...
Eu olhava Chantal e não entendia. Onde estava aquele rosto que eu achei intrigante? Onde estava aquela moça que me salvara? O sol a desmanchara, espalhara sua carne no céu, nos tetos de Paris, nas águas do rio, no mundo. Eu amava o mundo.
- Vamos andar um pouco? Está fazendo frio e aqui é úmido...
Subimos os degraus, atravessamos a Pont Neuf, caminhamos pela margem direita, pouco a pouco, a Notre Dame ficava mais perto.
- Vamos depressa. Com esse sol, os vitrais ficarão mais iluminados e a rosácea...
- Não quero ver rosácea nenhuma. Quero andar, ver o mundo, ver tudo...
Na esplanada em frente, Chantal teve vontade de fumar outro cigarro. Olhou em torno, era hábil em olhar assim, perifericamente, parecia ver em todas as direções, seus olhos então eram de inseto, redondos, indevassáveis. Acendeu um baseado, puxou uma, duas tragadas, lentamente, como se aspirasse a boca de um afogado. Passou-me a guimba -e reparei que seus dedos tremiam.
- Vamos, calibre um pouco mais. Quero que você tenha uma revelação.
Sem a mesma técnica, chupei com força o cigarro, engoli a fumaça. Senti a serpente se enroscar no estômago, mas não passou disso. Até chegarmos à porta, ainda tivemos tempo de fumar o resto do cigarro, o mesmo, sugado a dois.
Lá dentro, a igreja parecia mais sombria do que na véspera. Só aos poucos, ela foi exibindo sua nudez de pedra crua. Chantal segurou minha mão.
- Fecha os olhos agora. Fecha com força. Eu levo você.
- Como um ceguinho?
- Como um ceguinho. Você foi um ceguinho até agora. Não viu nada, não sabe nada. Vem!
Eu apertei a sua mão. Era diferente a sua mão. Não lhe sentia a carne, os ossos. Era um corrimão móvel, que deslizava pelo espaço, me conduzindo para onde queria ir, para onde deveria ir.
- Agora, você está bem diante da rosácea sul. Não abra os olhos de uma vez. Vá devagarinho, como se tivesse medo de ver tudo ao mesmo tempo. Levante um pouco a cabeça, assim...
Com a outra mão, ergueu meu queixo.
- Pronto! Faz de conta que você está sozinho no mundo, que é a primeira pessoa do mundo, a única pessoa viva do mundo. Não tenha pressa. Vamos, abra os olhos.
Aí aconteceu o vexame. Eu desaprendera a abrir os olhos. Fazia esforço, sempre abri e pisquei os olhos insensivelmente, era o mesmo que respirar, ouvir, andar, nunca pensei em botar uma perna à frente de outra, e ali estava, eu esquecera como se fazia para abrir os olhos.
- Não posso, Chantal... aconteceu alguma coisa... estou cego...
Chantal segurou minha mão com mais força. Parece que entendeu.
- Tá certo. Não faça esforço nenhum. Se puder, abra os olhos.
Ficamos um tempão ali. Eu procurava adivinhar a rosácea iluminada pelo sol de inverno. Depois senti um pânico total. E foi com meu pânico que Chantal me levou para fora. Conduziu-me com cuidado, como se eu fosse um vaso precioso, que pudesse quebrar. Ela se distraía às minhas custas. Eu era um brinquedinho para o seu vício.
- Pronto. Estamos na rua. Agora pode abrir os olhos.
Sem esforço algum, eles se abriram. O sol desaparecera. O mundo voltava a ser sombrio em Paris. Eu não tinha coragem de enfrentar Chantal. Ela devia estar rindo de mim.
- Que bobeira foi essa? -perguntou.
- Não sei. Não podia abrir os olhos. Só isso.
Chantal estava decepcionada. Não era a mesma. Não precisamos andar muito para suspeitar que ela queria se livrar de mim. Eu era um bolha, um estorvo. Em outra situação, seria eu o primeiro a fugir. Mas não queria perder Chantal. Convidei-a para tomar um café.
- Não. Café embrulha o estômago...
E depois de algum tempo em que caminhamos em silêncio, quase nos odiando:
- Vou para casa. Estou cansada e tenho compromisso à noite...
Ela queria dar o fora. Mas eu me sentia preso. Não ao fumo, nem à rosácea que não vira.
- Chantal, não me abandone... eu...
- Pare de ser idiota, seu! Isso não cola! Amanhã você me vê? Eu não quero que fale em amanhã comigo. Nem em ontem. Muito menos em hoje. Tchau!
Correu pela rua. Desceu no buraco do metrô, estação Cité. Eu não precisava de um buraco para me esconder no fundo da terra.





Texto Anterior: "Olhos Famintos 2": Terror apela para medo feito em computador
Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Ator Dinsdale Landen morre aos 71 anos
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.