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CARLOS HEITOR CONY
Cena em Paris com Chantal
A garoa parou de repente.
Pensando bem, tudo começava a acontecer de repente. Até o
sol que furou as nuvens e iluminou o rio, as árvores, as calçadas,
a massa cinzenta da Notre Dame.
A cartinha do corcunda comunicando, "mamãe, arranjei hoje um
bom emprego, o de sineiro...". Era
a primeira vez que via o sol em
Paris. Um pedaço pequenino de
céu azul, um fiapo limpo, muito
azul e fundo. Chantal disse que o
sol trazia mais frio.
- Como é, melhorou?
Não tinha melhorado, continuava enjoado, como se nada tivesse importância, só eu. Eu umbigo, eixo e flecha do universo.
Depois sim, vinha o resto, Chantal, o rio, Notre Dame. Acho que
disse isso para ela.
- Não vá assim com tanta
pressa. É coisa de estreante. Antes
de fumar, você já se sentia o centro do mundo, o núcleo do universo. Só que, agora, você vai sentir fisicamente que o mundo começa em você... Compreende?...
Começa, mas também acaba...
Eu olhava Chantal e não entendia. Onde estava aquele rosto que
eu achei intrigante? Onde estava
aquela moça que me salvara? O
sol a desmanchara, espalhara sua
carne no céu, nos tetos de Paris,
nas águas do rio, no mundo. Eu
amava o mundo.
- Vamos andar um pouco? Está fazendo frio e aqui é úmido...
Subimos os degraus, atravessamos a Pont Neuf, caminhamos
pela margem direita, pouco a
pouco, a Notre Dame ficava mais
perto.
- Vamos depressa. Com esse
sol, os vitrais ficarão mais iluminados e a rosácea...
- Não quero ver rosácea nenhuma. Quero andar, ver o mundo, ver tudo...
Na esplanada em frente, Chantal teve vontade de fumar outro
cigarro. Olhou em torno, era hábil em olhar assim, perifericamente, parecia ver em todas as direções, seus olhos então eram de
inseto, redondos, indevassáveis.
Acendeu um baseado, puxou
uma, duas tragadas, lentamente,
como se aspirasse a boca de um
afogado. Passou-me a guimba
-e reparei que seus dedos tremiam.
- Vamos, calibre um pouco
mais. Quero que você tenha uma
revelação.
Sem a mesma técnica, chupei
com força o cigarro, engoli a fumaça. Senti a serpente se enroscar
no estômago, mas não passou disso. Até chegarmos à porta, ainda
tivemos tempo de fumar o resto
do cigarro, o mesmo, sugado a
dois.
Lá dentro, a igreja parecia mais
sombria do que na véspera. Só aos
poucos, ela foi exibindo sua nudez de pedra crua. Chantal segurou minha mão.
- Fecha os olhos agora. Fecha
com força. Eu levo você.
- Como um ceguinho?
- Como um ceguinho. Você foi
um ceguinho até agora. Não viu
nada, não sabe nada. Vem!
Eu apertei a sua mão. Era diferente a sua mão. Não lhe sentia a
carne, os ossos. Era um corrimão
móvel, que deslizava pelo espaço,
me conduzindo para onde queria
ir, para onde deveria ir.
- Agora, você está bem diante
da rosácea sul. Não abra os olhos
de uma vez. Vá devagarinho, como se tivesse medo de ver tudo ao
mesmo tempo. Levante um pouco
a cabeça, assim...
Com a outra mão, ergueu meu
queixo.
- Pronto! Faz de conta que você está sozinho no mundo, que é a
primeira pessoa do mundo, a única pessoa viva do mundo. Não tenha pressa. Vamos, abra os olhos.
Aí aconteceu o vexame. Eu desaprendera a abrir os olhos. Fazia
esforço, sempre abri e pisquei os
olhos insensivelmente, era o mesmo que respirar, ouvir, andar,
nunca pensei em botar uma perna à frente de outra, e ali estava,
eu esquecera como se fazia para
abrir os olhos.
- Não posso, Chantal... aconteceu alguma coisa... estou cego...
Chantal segurou minha mão
com mais força. Parece que entendeu.
- Tá certo. Não faça esforço
nenhum. Se puder, abra os olhos.
Ficamos um tempão ali. Eu procurava adivinhar a rosácea iluminada pelo sol de inverno. Depois senti um pânico total. E foi
com meu pânico que Chantal me
levou para fora. Conduziu-me
com cuidado, como se eu fosse um
vaso precioso, que pudesse quebrar. Ela se distraía às minhas
custas. Eu era um brinquedinho
para o seu vício.
- Pronto. Estamos na rua.
Agora pode abrir os olhos.
Sem esforço algum, eles se abriram. O sol desaparecera. O mundo voltava a ser sombrio em Paris. Eu não tinha coragem de enfrentar Chantal. Ela devia estar
rindo de mim.
- Que bobeira foi essa? -perguntou.
- Não sei. Não podia abrir os
olhos. Só isso.
Chantal estava decepcionada.
Não era a mesma. Não precisamos andar muito para suspeitar
que ela queria se livrar de mim.
Eu era um bolha, um estorvo. Em
outra situação, seria eu o primeiro a fugir. Mas não queria perder
Chantal. Convidei-a para tomar
um café.
- Não. Café embrulha o estômago...
E depois de algum tempo em
que caminhamos em silêncio,
quase nos odiando:
- Vou para casa. Estou cansada e tenho compromisso à noite...
Ela queria dar o fora. Mas eu
me sentia preso. Não ao fumo,
nem à rosácea que não vira.
- Chantal, não me abandone...
eu...
- Pare de ser idiota, seu! Isso
não cola! Amanhã você me vê? Eu
não quero que fale em amanhã
comigo. Nem em ontem. Muito
menos em hoje. Tchau!
Correu pela rua. Desceu no buraco do metrô, estação Cité. Eu
não precisava de um buraco para
me esconder no fundo da terra.
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