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NELSON ASCHER
Feliz Ano Novo
Não lembro agora se foi lá
pelo final do primário ou no
início do ginásio (aquilo que, em
termos atuais, seria a metade do
primeiro grau) que tive de decorar pela primeira vez um poema.
Não que fosse obrigatório, mas,
caso o conseguisse, isso me permitiria, segundo meus cálculos (e eu
era melhor em matemática que
em português), obter os pontos
extras que me dispensariam da
obrigação de, com empenho redobrado e triplamente maçante, estudar gramática, disciplina que
não me fascinava muito. Uma
vez memorizados, os versos, como
os antigos números telefônicos,
recusaram-se terminantemente a
abandonar os desvãos de meu sistema nervoso central, de modo
que posso repeti-los, sem dificuldade, ainda hoje.
A primeira estrofe dizia: "Sou o
Tempo que passa, que passa,/
Sem princípio, sem fim, sem medida!/ Vou levando a Ventura e a
Desgraça,/ Vou levando as vaidades da Vida!". Foi só bem depois
da criação do Google que me
ocorreu tentar, jogando no mecanismo de busca a linha de abertura, descobrir quem era o autor e
-surpresa!- tratava-se de nosso parnasiano favorito, aquele
que, num concurso promovido
pela revista "Fon-Fon" em 1913,
fora eleito o Príncipe dos Poetas
Brasileiros: Olavo Bilac (1865-1918), ou melhor, Olavo Braz
Martins dos Guimarães Bilac, detalhe importante este, pois, como
qualquer leitor sabe, o nome completo corresponde a um alexandrino perfeito, com suas 12 sílabas, as tônicas equilibradamente
distribuídas e a cesura correta na
sexta, dividindo o conjunto em
dois hemistíquios iguais.
Embora a reputação do autor,
em alta durante sua vida, tenha,
graças à campanha eficaz que os
modernistas moveram contra ele,
se estabilizado num ponto baixíssimo (não necessariamente justo
e, portanto, à espera de reavaliação), são raros os que puseram
em questão sua perícia de versificador, de conhecedor e aplicador
das minúcias tecno-mecânicas do
ofício, fato que o poeminha citado
(e composto originalmente para
crianças) ilustra com desenvoltura e graça, realizando o que
amiúde cabe à poesia fazer, ou seja, reiterar de maneira memorável determinados truísmos como
os que o parnasiano cinzela (ou,
quem sabe, apenas martela)
quando, falando em nome do
tempo, insiste que "Ninguém pode evitar os meus danos..." e arremata: "Não façais pouco caso das
horas!". Banal? Sem dúvida. Falso? De forma nenhuma.
Aliás, chegando à segunda metade da primeira década do terceiro milênio, conforme recordo
bonecos com uma vassourinha na
mão sendo vendidos por camelôs
no largo do Paissandu (OK: eu tinha dois ou, no máximo, três
anos de idade) e me vem à mente
que, interessado e ansioso, já
acompanhei a Guerra dos Seis
Dias e a da Biafra, nada posso fazer salvo subscrever as redundâncias bilaquianas. Confesso, assim,
como diria Neruda, outro poeta
não menos capaz que nosso
"príncipe" de, entre duas vírgulas,
ascender do kitsch (socialista-irrealista no caso dele) ao sublime e
despencar (ou voltar ao normal)
logo adiante, que vivi e que, além
disso, meninos, eu vi, mesmo que,
em geral, somente na telinha
branca e preta de um televisor cuja antena ostentava, na ponta,
um chumaço de bombril, tudo o
que segue abaixo e mais.
O golpe militar de 64 no Brasil e
o de 73 no Chile. O ápice e ambos
os finais da Guerra do Vietnã. As
guerras do Yom Kipur e das Malvinas (ou eram Falklands?), durante a qual a esquerda latino-americana em bloco torceu entusiasmada pela vitória da pior ditadura fascista do subcontinente.
As revoluções iraniana e nicaragüense. A invasão soviética da
Tchecoslováquia e do Afeganistão. A queda do Muro de Berlim.
O último teste nuclear francês
(apoiado igualmente em bloco
pela intelectualidade, toda ela orgânica e patriótica, do país). Os
genocídios (que, após o Holocausto, não se repetiriam, certo?) no
Camboja, em Ruanda, no Zaire/
Congo, em Darfur (no Sudão) etc.
-barbaridades concretas que raramente, se é que alguma vez,
provocaram marchas de protesto,
manifestações ou passeatas em
Londres, Paris, Roma, São Paulo,
crimes contra a humanidade pelos quais nenhum responsável
graúdo foi perseguido a sério ou
severamente punido. O começo
(mas, até o momento, não o fim)
da sangueira balcânica a uma
hora de vôo de diversas capitais
européias. O surgimento e expansão da Aids. O progresso da globalização e a eclosão global do
movimento antiglobalizante.
Vi, enfim, coisas nas quais, tal
qual afirma o "replicante" Roy
Batty (Rutger Hauer), protagonista de "Blade Runner, o Caçador de Andróides" (1982), nos
derradeiros momentos de sua vida programadamente limitada,
"vocês humanos não acreditariam". Várias entre elas precisaram de décadas e toneladas de informação adicional antes de fazer, num quadro maior ou diferente, um mínimo de sentido, enquanto outras mal e mal principiaram a entremostrar suas conseqüências e desdobramentos relevantes. Nem é impossível que
demore ainda um século para
que a história recém-saída do forno se torne inteligível e interpretável. Quem julgue que a entende
bem está quase seguramente errado(a).
Compreender o passado recente
parece, nos tempos que correm
(ou passam e passam), tão difícil
e arriscado quanto prognosticar
eventos vindouros, duas tarefas
que convém confiar aos adeptos
de doutrinas infalíveis, aos portadores de chaves mestras ideológicas, aos detentores de verdades
indiscutíveis. Quanto a nós, pobres mortais, resta-nos a suspeita
de que, mais distantes do fim da
história do que há pouco se imaginava, vivemos, independentemente de apreciá-lo ou não, numa época dia a dia mais interessante.
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