São Paulo, segunda-feira, 02 de janeiro de 2006

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NELSON ASCHER

Feliz Ano Novo

Não lembro agora se foi lá pelo final do primário ou no início do ginásio (aquilo que, em termos atuais, seria a metade do primeiro grau) que tive de decorar pela primeira vez um poema. Não que fosse obrigatório, mas, caso o conseguisse, isso me permitiria, segundo meus cálculos (e eu era melhor em matemática que em português), obter os pontos extras que me dispensariam da obrigação de, com empenho redobrado e triplamente maçante, estudar gramática, disciplina que não me fascinava muito. Uma vez memorizados, os versos, como os antigos números telefônicos, recusaram-se terminantemente a abandonar os desvãos de meu sistema nervoso central, de modo que posso repeti-los, sem dificuldade, ainda hoje.
A primeira estrofe dizia: "Sou o Tempo que passa, que passa,/ Sem princípio, sem fim, sem medida!/ Vou levando a Ventura e a Desgraça,/ Vou levando as vaidades da Vida!". Foi só bem depois da criação do Google que me ocorreu tentar, jogando no mecanismo de busca a linha de abertura, descobrir quem era o autor e -surpresa!- tratava-se de nosso parnasiano favorito, aquele que, num concurso promovido pela revista "Fon-Fon" em 1913, fora eleito o Príncipe dos Poetas Brasileiros: Olavo Bilac (1865-1918), ou melhor, Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac, detalhe importante este, pois, como qualquer leitor sabe, o nome completo corresponde a um alexandrino perfeito, com suas 12 sílabas, as tônicas equilibradamente distribuídas e a cesura correta na sexta, dividindo o conjunto em dois hemistíquios iguais.
Embora a reputação do autor, em alta durante sua vida, tenha, graças à campanha eficaz que os modernistas moveram contra ele, se estabilizado num ponto baixíssimo (não necessariamente justo e, portanto, à espera de reavaliação), são raros os que puseram em questão sua perícia de versificador, de conhecedor e aplicador das minúcias tecno-mecânicas do ofício, fato que o poeminha citado (e composto originalmente para crianças) ilustra com desenvoltura e graça, realizando o que amiúde cabe à poesia fazer, ou seja, reiterar de maneira memorável determinados truísmos como os que o parnasiano cinzela (ou, quem sabe, apenas martela) quando, falando em nome do tempo, insiste que "Ninguém pode evitar os meus danos..." e arremata: "Não façais pouco caso das horas!". Banal? Sem dúvida. Falso? De forma nenhuma.
Aliás, chegando à segunda metade da primeira década do terceiro milênio, conforme recordo bonecos com uma vassourinha na mão sendo vendidos por camelôs no largo do Paissandu (OK: eu tinha dois ou, no máximo, três anos de idade) e me vem à mente que, interessado e ansioso, já acompanhei a Guerra dos Seis Dias e a da Biafra, nada posso fazer salvo subscrever as redundâncias bilaquianas. Confesso, assim, como diria Neruda, outro poeta não menos capaz que nosso "príncipe" de, entre duas vírgulas, ascender do kitsch (socialista-irrealista no caso dele) ao sublime e despencar (ou voltar ao normal) logo adiante, que vivi e que, além disso, meninos, eu vi, mesmo que, em geral, somente na telinha branca e preta de um televisor cuja antena ostentava, na ponta, um chumaço de bombril, tudo o que segue abaixo e mais.
O golpe militar de 64 no Brasil e o de 73 no Chile. O ápice e ambos os finais da Guerra do Vietnã. As guerras do Yom Kipur e das Malvinas (ou eram Falklands?), durante a qual a esquerda latino-americana em bloco torceu entusiasmada pela vitória da pior ditadura fascista do subcontinente. As revoluções iraniana e nicaragüense. A invasão soviética da Tchecoslováquia e do Afeganistão. A queda do Muro de Berlim. O último teste nuclear francês (apoiado igualmente em bloco pela intelectualidade, toda ela orgânica e patriótica, do país). Os genocídios (que, após o Holocausto, não se repetiriam, certo?) no Camboja, em Ruanda, no Zaire/ Congo, em Darfur (no Sudão) etc. -barbaridades concretas que raramente, se é que alguma vez, provocaram marchas de protesto, manifestações ou passeatas em Londres, Paris, Roma, São Paulo, crimes contra a humanidade pelos quais nenhum responsável graúdo foi perseguido a sério ou severamente punido. O começo (mas, até o momento, não o fim) da sangueira balcânica a uma hora de vôo de diversas capitais européias. O surgimento e expansão da Aids. O progresso da globalização e a eclosão global do movimento antiglobalizante.
Vi, enfim, coisas nas quais, tal qual afirma o "replicante" Roy Batty (Rutger Hauer), protagonista de "Blade Runner, o Caçador de Andróides" (1982), nos derradeiros momentos de sua vida programadamente limitada, "vocês humanos não acreditariam". Várias entre elas precisaram de décadas e toneladas de informação adicional antes de fazer, num quadro maior ou diferente, um mínimo de sentido, enquanto outras mal e mal principiaram a entremostrar suas conseqüências e desdobramentos relevantes. Nem é impossível que demore ainda um século para que a história recém-saída do forno se torne inteligível e interpretável. Quem julgue que a entende bem está quase seguramente errado(a).
Compreender o passado recente parece, nos tempos que correm (ou passam e passam), tão difícil e arriscado quanto prognosticar eventos vindouros, duas tarefas que convém confiar aos adeptos de doutrinas infalíveis, aos portadores de chaves mestras ideológicas, aos detentores de verdades indiscutíveis. Quanto a nós, pobres mortais, resta-nos a suspeita de que, mais distantes do fim da história do que há pouco se imaginava, vivemos, independentemente de apreciá-lo ou não, numa época dia a dia mais interessante.


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