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MARCELO COELHO
Tim Burton está certo: é mesmo um idiota
Por que diabos fui ver "A Lenda
do Cavaleiro sem Cabeça", de
Tim Burton? Andei um bom tempo sem ir ao cinema. Era a principal estréia da semana, se excluirmos "Nenhum a Menos", filme
chinês que segue, ao que parece, a
fórmula do cinema iraniano.
Com todo o respeito a Zhang Yimou e Abbas Kiarostami, prefiro
não ver. Já vi. Ou é a criança que
está atrás de um sapato, ou é a
criança que está atrás de um caderno, ou é a criança que está
atrás de um peixinho, ou é o diretor que quer filmar uma cena e
não consegue, ou é o ator que quer
filmar uma cena e não consegue.
Sou eu que não consigo mais.
Uma fórmula, como qualquer outra.
Dizer que esses filmes são chatos
é dizer a verdade. Mas a chatice
de "A Lenda do Cavaleiro sem
Cabeça" é ainda pior.
Seduzi-me pelas fotos publicadas nos jornais, pela idéia de um
filme gótico, pelas névoas azuis e
roupas negras, pela possibilidade
de sentir um medo confortável,
romântico, sem histeria; seduzi-me por Tim Burton, que fez o ótimo "Ed Wood".
Era um filme sobre o pior cineasta de todos os tempos, o Orson Welles invertido, Edward
Wood Jr. Mais que isso, era um filme sobre a credulidade da qual
vive a cultura de massa. No caso
de Ed Wood, a credulidade que se
espera do espectador comum tinha vitimado o próprio artista: ele
fazia, nos anos 50, péssimos filmes, acreditando que fossem geniais.
"A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" parece ser a vingança da
cultura de massa sobre Tim Burton, que a criticara com tanta ternura. Podemos, sem dúvida, ver
com ternura o lixo cultural do
passado; o problema é que essa
atitude logo se transforma em
"nostalgia", em "homenagem",
em imitação.
Assim como os selvagens transformam em ídolos de pedra os
fantasmas que os assustam, os filmes de terror antigos fundamentavam-se numa necessidade de
encenação bastante ingênua. É
que o cinema é capaz de tornar
tudo visível; tem algo de espiritismo; seu poder de "realizar" o imaginário exigiria necessariamente
que não só os sonhos, mas os terrores do homem viessem à tela.
Damos risada dos velhos filmes
de Drácula e Frankenstein porque, com certa crueldade, esquecemos o exorcismo tosco que fizeram em nosso benefício. Um perigo, entretanto, eles não exorcizaram: o de se fazer e ver um filme
ruim.
É esse o grande fantasma de
Tim Burton. O horror, para ele,
não está no sobrenatural, mas no
fracasso cinematográfico. Nada
melhor que exorcizá-lo, portanto;
com "A Lenda do Cavaleiro sem
Cabeça", Burton fez um filme péssimo.
Não assusta, não diverte, não
interessa. Há clichês o tempo todo.
Do rapazinho que ajuda o herói à
grande perseguição final (que pode ser de carros, de motocicletas,
ou de cavalos: no caso, é um cavalo e uma carruagem), da loira
misteriosa ao sangue de catchup,
das brigas de herança ao monstro
que renasce depois de levar 20 balas no bucho, tudo é uma reciclagem e irritante de Bogart e "Halloween".
A imagem do monstro que nunca morre, Drácula, Freddy Krueger, Cavaleiro sem Cabeça, pouco
importa, significa no fundo o que
ocorre com todo clichê; serviria
também como metáfora do cinema hollywoodiano em seu conjunto.
Será que Tim Burton estava
consciente disso quando fez "A
Lenda..."? Desconfio que sim. Seu
"Marte Ataca" era uma boa paródia dos filmes de invasão alienígena. O protagonista de "A Lenda
do Cavaleiro sem Cabeça", Ichabod Crane (Johnny Depp), é um
detetive racionalista e medroso,
às voltas com assassinatos horrorosos na Nova Inglaterra de 1799.
Recorre inutilmente a uma parafernália científica para resolver o
caso.
Numa cena, ele examina um cadáver por meio de complicado
aparato ótico, mistura de microscópio e lente de operador cirúrgico. Usa um pó misterioso que,
quando aplicado ao sangue da vítima, produz fumaça verde. Esse
aparato ótico e essa fumaça verde
não seriam exatamente o que
Tim Burton usa quando faz cinema? Tecnologia avançada às voltas com superstição vulgar.
Essa seria uma maneira de "entender" o filme. De elogiá-lo, até
na medida em que veríamos seu
diretor consciente, em tese, do que
está fazendo; cheio de intenções
ocultas sob a idiotice do enredo;
metalinguístico e crítico; só na
aparência submetido aos clichês
que reproduz.
O problema é que nada disso é
verdade. Apesar de todo deboche,
Tim Burton quer que o deboche
seja levado a sério. Prefere, de novo por ternura, a idiotia.
Por mais crítico que seja com relação a Hollywood, chora a infância que nunca perdeu. Gostaria de
ser mais infantil do que é.
O resultado -ao contrário da
velha indústria cultural, que se
contentava em infantilizar o
adulto- se torna especialmente
desonesto: confia-se na capacidade de o adulto se infantilizar por si
mesmo. "Sei que você sabe que isso é uma besteira; sei que você ficará contente, pois é isso mesmo o
que você quer. E não se preocupe,
pois eu sou tão idiota quanto você." Acho que Tim Burton está
certo. É mesmo um idiota. Lars
von Trier que se cuide.
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