São Paulo, Quarta-feira, 02 de Fevereiro de 2000


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MARCELO COELHO
Tim Burton está certo: é mesmo um idiota

Por que diabos fui ver "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", de Tim Burton? Andei um bom tempo sem ir ao cinema. Era a principal estréia da semana, se excluirmos "Nenhum a Menos", filme chinês que segue, ao que parece, a fórmula do cinema iraniano.
Com todo o respeito a Zhang Yimou e Abbas Kiarostami, prefiro não ver. Já vi. Ou é a criança que está atrás de um sapato, ou é a criança que está atrás de um caderno, ou é a criança que está atrás de um peixinho, ou é o diretor que quer filmar uma cena e não consegue, ou é o ator que quer filmar uma cena e não consegue. Sou eu que não consigo mais. Uma fórmula, como qualquer outra.
Dizer que esses filmes são chatos é dizer a verdade. Mas a chatice de "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" é ainda pior.
Seduzi-me pelas fotos publicadas nos jornais, pela idéia de um filme gótico, pelas névoas azuis e roupas negras, pela possibilidade de sentir um medo confortável, romântico, sem histeria; seduzi-me por Tim Burton, que fez o ótimo "Ed Wood".
Era um filme sobre o pior cineasta de todos os tempos, o Orson Welles invertido, Edward Wood Jr. Mais que isso, era um filme sobre a credulidade da qual vive a cultura de massa. No caso de Ed Wood, a credulidade que se espera do espectador comum tinha vitimado o próprio artista: ele fazia, nos anos 50, péssimos filmes, acreditando que fossem geniais.
"A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça" parece ser a vingança da cultura de massa sobre Tim Burton, que a criticara com tanta ternura. Podemos, sem dúvida, ver com ternura o lixo cultural do passado; o problema é que essa atitude logo se transforma em "nostalgia", em "homenagem", em imitação.
Assim como os selvagens transformam em ídolos de pedra os fantasmas que os assustam, os filmes de terror antigos fundamentavam-se numa necessidade de encenação bastante ingênua. É que o cinema é capaz de tornar tudo visível; tem algo de espiritismo; seu poder de "realizar" o imaginário exigiria necessariamente que não só os sonhos, mas os terrores do homem viessem à tela.
Damos risada dos velhos filmes de Drácula e Frankenstein porque, com certa crueldade, esquecemos o exorcismo tosco que fizeram em nosso benefício. Um perigo, entretanto, eles não exorcizaram: o de se fazer e ver um filme ruim.
É esse o grande fantasma de Tim Burton. O horror, para ele, não está no sobrenatural, mas no fracasso cinematográfico. Nada melhor que exorcizá-lo, portanto; com "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", Burton fez um filme péssimo.
Não assusta, não diverte, não interessa. Há clichês o tempo todo. Do rapazinho que ajuda o herói à grande perseguição final (que pode ser de carros, de motocicletas, ou de cavalos: no caso, é um cavalo e uma carruagem), da loira misteriosa ao sangue de catchup, das brigas de herança ao monstro que renasce depois de levar 20 balas no bucho, tudo é uma reciclagem e irritante de Bogart e "Halloween".
A imagem do monstro que nunca morre, Drácula, Freddy Krueger, Cavaleiro sem Cabeça, pouco importa, significa no fundo o que ocorre com todo clichê; serviria também como metáfora do cinema hollywoodiano em seu conjunto.
Será que Tim Burton estava consciente disso quando fez "A Lenda..."? Desconfio que sim. Seu "Marte Ataca" era uma boa paródia dos filmes de invasão alienígena. O protagonista de "A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça", Ichabod Crane (Johnny Depp), é um detetive racionalista e medroso, às voltas com assassinatos horrorosos na Nova Inglaterra de 1799. Recorre inutilmente a uma parafernália científica para resolver o caso.
Numa cena, ele examina um cadáver por meio de complicado aparato ótico, mistura de microscópio e lente de operador cirúrgico. Usa um pó misterioso que, quando aplicado ao sangue da vítima, produz fumaça verde. Esse aparato ótico e essa fumaça verde não seriam exatamente o que Tim Burton usa quando faz cinema? Tecnologia avançada às voltas com superstição vulgar.
Essa seria uma maneira de "entender" o filme. De elogiá-lo, até na medida em que veríamos seu diretor consciente, em tese, do que está fazendo; cheio de intenções ocultas sob a idiotice do enredo; metalinguístico e crítico; só na aparência submetido aos clichês que reproduz.
O problema é que nada disso é verdade. Apesar de todo deboche, Tim Burton quer que o deboche seja levado a sério. Prefere, de novo por ternura, a idiotia.
Por mais crítico que seja com relação a Hollywood, chora a infância que nunca perdeu. Gostaria de ser mais infantil do que é.
O resultado -ao contrário da velha indústria cultural, que se contentava em infantilizar o adulto- se torna especialmente desonesto: confia-se na capacidade de o adulto se infantilizar por si mesmo. "Sei que você sabe que isso é uma besteira; sei que você ficará contente, pois é isso mesmo o que você quer. E não se preocupe, pois eu sou tão idiota quanto você." Acho que Tim Burton está certo. É mesmo um idiota. Lars von Trier que se cuide.


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