São Paulo, sexta-feira, 02 de fevereiro de 2001

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CARLOS HEITOR CONY

Suculenta salada sobre a aventura humana

Li, não sei onde, que o homem só aprende a viver quando morre. Não sei não. Acho estúpido considerar a morte como o mestrado, o pós-doutorado, o PhD da vida, mesmo porque a morte não nos ensina nada, embora a vida ensine a gente ao contrário.
Oscar Wilde tem uma frase de seus tempos de decadência, quando vivia pelas ruas de Paris dando facadas em conhecidos e desconhecidos para pagar o hotel em que morava: ""Escrevi muito quando não conhecia a vida. Agora, que a conheço bem, não escrevo mais nada".
Menos poético do que o autor de ""O Retrato de Dorian Gray", um francês, que paradoxalmente era otimista, dizia que o homem nasce sem sentir, morre sofrendo e se esquece de viver.
Esses pensamentos mais ou menos funéreos, por mais estranho que pareçam, foram provocados quando, nas folhas aqui do Rio, fiquei sabendo que a prefeitura do antigo prefeito Luiz Paulo Conde e a prefeitura do atual, César Maia, não chegam a um acordo sobre o cordão sanitário que livrará a Lagoa das águas impuras que são despejadas nela.
Falo em meu interesse, ""pro domo mea", como diria um erudito. Há 22 anos moro diante da Lagoa. Nesse tempo todo, somente assisti a duas mortandades de peixes e tomei conhecimento de umas 200 tentativas de acabar com o problema.
Cada autoridade que chega derruba os projetos da autoridade que sai, aplica novas técnicas que a autoridade vindoura repudiará -e assim a Lusitana roda e o Frederico trota. Contudo meu consolo é saber que o homem, enquanto ser vivo, dificilmente aprende a viver, daí que santo Agostinho, numa tirada genial, disse que a vida não é mortal, a morte é que é vital.
Explico-me. Individualmente, o homem pode até ser inteligente, como o Roberto Campos, o Ariano Suassuna, o Jô Soares. Mas em grupo, no sufoco geral que constitui a humanidade, a burrice predomina e atravanca o progresso.
Poderia dar mil exemplos, mas fico em poucos. A máquina a vapor, que livrou o homem do trabalho manual, do vento, do cavalo, do burro e do boi, já estava inventada desde a Antiguidade, quando Héron, observando a mesma chaleira que Fulton e Stephenson observariam tantos séculos mais tarde, descobriu que o vapor tinha energia e com ela conseguiu abrir as portas do templo de Alexandria.
Os sacerdotes gostaram da idéia, a classe dominante também, as cerimônias religiosas ganhavam um efeito especial que mereceria um Oscar na Academia da época -que ainda não havia, pois as academias existentes pensavam em outras coisas. Mas, para os fiéis, a magia da religião triunfava: sem nenhum esforço de mão humana, as portas do templo se abriam, sozinhas, para que os deuses fossem adorados.
Pergunta cretina: por que levou tanto tempo até que Fulton e Stephenson, após observarem a mesmíssima tampa de chaleira, descobrissem que o vapor tinha energia suficiente para movimentar navios, locomotivas e máquinas complicadíssimas?
É conhecida aquela famosa pisada de bola de Napoleão, quando Stephenson levou meses pedindo-lhe uma audiência para mostrar seu invento (um barco a vapor). Chateado pela insistência, Napoleão recebeu-o de má vontade, viu a experiência e a desdenhou. Chamou o inventor de charlatão.
Ele poderia ter conquistado a Inglaterra se tivesse navios a vapor. Napoleão acabou em Santa Helena, numa prisão menos especial do que a do ex-juiz Nicolau, à qual chegou após viajar dois meses num navio ainda a vela da sua rival. Pois a Inglaterra custou também a se convencer do vapor. Com a navegação rotineira, que vinha dos tempos dos fenícios -"a vela em frágil lenho", de que falava Camões-, os ingleses haviam conquistado os sete mares do mundo.
Poderia citar mil outros exemplos da dificuldade humana em aprender a viver. O melhor mesmo é fazer elipses, como aquela que Stanley Kubrick fez em ""2001 - Uma Odisséia no Espaço". O macaco joga para cima o osso do macaco que acabara de comer, o osso transforma-se na sofisticada cápsula espacial que vai para o cosmos ao som de uma valsa de Strauss. Elipse de alguns milhões de anos.
Só menor do que a do cartunista pornográfico Carlos Zéfiro, que fazia revistinhas de sacanagem clandestinas, numa época em que o mercado editorial ainda não aderira à mídia erótica. No primeiro quadrinho, dois seres extraterrestres, nos confins do espaço, contemplam, na tela de um computador incrementadíssimo, o universo inteiro, no qual o planeta Terra é um ponto insignificante. Dão um zoom assombroso e, no quadrinho seguinte, conseguem captar, à distância de trilhões de anos-luz, em Trancoso (BA), duas lésbicas nuas, escancaradas, fazendo poucas-vergonhas uma na outra. Decidem ir para lá.
P.S.: Creio que bati um recorde pessoal. Neste artigo citei Oscar Wilde, santo Agostinho, o ex-prefeito Conde, o prefeito Maia, Roberto Campos, Ariano Suassuna, Jô Soares, Fulton, o Frederico Trotta, Stephenson, Héron, Camões, o ex-juiz Nicolau, Napoleão Bonaparte, Stanley Kubrick, Strauss e o Carlos Zéfiro. Ficou faltando a Dana de Teffé, pois a tanto não me ajudaram engenho e arte para incluí-la nesta resenha da aventura humana.


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