São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2002

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INÉDITOS

Chega ao Brasil, pela editora Record, "As Incríveis Aventuras de Kavalier & Clay", do vencedor do Pulitzer Michael Chabon

Herói de guerra

Anos depois, falando a um entrevistador ou a um público de velhos fãs numa convenção de histórias de quadrinhos, Sam Clay gostava de declarar, a propósito da maior criação sua e de Joe Kavalier, que, quando menino, trancado e de mãos e pés atados dentro do recipiente estanque conhecido como Brooklyn, Nova York, costumava ser assombrado por sonhos de Harry Houdini. "Para mim, Clark Kent numa cabine de telefone e Houdini num caixote eram uma só coisa", expunha em tom erudito na WonderCon ou em Angoulême ou ao editor do "The Comics Journal". "Você não era, ao sair, a mesma pessoa que tinha entrado. O primeiro número de mágica de Houdini, vocês sabem, quando ele estava começando. Chamava-se "Metamorfose". Nunca foi uma simples questão de escapar. Era também uma questão de transformação." A verdade é que, quando garoto, Sammy só tinha um interesse casual, na melhor das hipóteses, em Harry Houdini e em seus feitos lendários; seus grandes heróis eram Nikola Tesla, Louis Pasteur e Jack London. No entanto, o relato do seu papel -do papel da sua própria imaginação- no nascimento do Escapista, como todas as suas melhores fabulações, soava verdadeiro. Seus sonhos sempre tinham sido houdiniescos: eram os sonhos de uma crisálida debatendo-se no seu casulo cego, louca por um gosto de luz e ar.
Houdini era um herói de gente do povo, de garotos da cidade e de judeus; Samuel Louis Klayman era todos os três. Tinha 17 anos quando as aventuras começaram: falador, talvez não tão rápido dos pés quanto gostava de crer e com a tendência de ser, como muitos otimistas, um pouco excitável. Não era, sob qualquer padrão convencional, bonito. Seu rosto era um triângulo invertido, a testa ampla, o queixo pontudo, com lábios salientes e um nariz grosso e abusado. Tinha uma postura desleixada e as roupas lhe caíam mal: parecia sempre que lhe haviam roubado o dinheiro do almoço. Saía toda manhã com o rosto glabro da própria inocência, mas ao meio-dia um rosto bem escanhoado não passava de uma memória, uma penumbra vadia nas mandíbulas, insuficiente para lhe dar um ar de durão. Ele se considerava feio, mas isto era porque nunca vira seu rosto em repouso. Entregara o "Eagle" a maior parte do ano de 1931 a fim de poder comprar um jogo de halteres, que havia levantado toda manhã durante os oito anos seguintes, até que seus braços, seu peito e os ombros ficaram musculosos e fortes; a pólio o deixara com as pernas de um menino delicado. De pé e de meias, media 1,65 m. Como todos os seus amigos, considerava um cumprimento quando alguém o chamava de sabichão. Possuía uma compreensão incorreta, mas fervorosa do funcionamento da televisão, da energia atômica e da antigravidade e nutria a ambição -uma entre mil- de acabar seus dias nas praias quentes e ensolaradas do Grande Oceano Polar de Vênus. Leitor onívoro com uma característica de auto-aperfeiçoamento, íntimo de Stevenson, London e Wells, respeitoso de Wolfe, Dreiser e Dos Passos, idólatra de S.J. Perelman, seu regime de aprimoramento interior mascarava o apetite geralmente culpado. Em seu caso a paixão oculta -uma delas, pelo menos- era por aqueles retângulos de sangue e suspense a 25 centavos, os "pulps". Tinha corrido atrás e lido cada edição quinzenal de "O Sombra", retrocedendo até 1933, e estava a caminho de reunir as coleções completas de "O Vingador" e "Doc Savage".
A grande carreira de Kavalier & Clay -e a verdadeira história do nascimento do Escapista- começou em 1939, pelo final de outubro, na noite em que a mãe de Sammy irrompeu no seu quarto de dormir, encostou o anel e os férreos nós dos dedos no seu crânio e o mandou afastar-se e abrir lugar na cama para seu primo de Praga. Sammy sentou-se na cama, o coração batendo nas juntas das suas mandíbulas. À luz lívida do tubo fluorescente sobre a pia da cozinha, ele divisou um jovem esguio mais ou menos da sua idade, encostado como um ponto de interrogação contra a moldura da porta, uma pilha desalinhada de jornais enfeixada sob um dos braços, o outro braço jogado como se com vergonha sobre o rosto. Este, disse a sra. Klayman, dando a Sammy um prestativo empurrão para a parede, é Josef Kavalier, o filho do meu irmão Emil, que chegou esta noite a Nova York num ônibus da Greyhound, vindo direto de San Francisco.
- Qual é o problema dele? -perguntou Sammy. Afastou-se até que seus ombros tocaram o gesso frio. Tomou o cuidado de levar os dois travesseiros. - Está doente?
- O que você acha? -disse sua mãe, batendo com as mãos o espaço vazio de lençol, como se para espalhar quaisquer partículas ofensivas que Sammy pudesse ter deixado para trás. Ela acabara de voltar para casa de um plantão suicida de duas semanas no Bellevue, onde trabalhava como enfermeira psiquiátrica. O cheiro rançoso do hospital estava nela, mas o uniforme aberto na gola deixava escapar um leve odor de lavanda na qual banhara sua ossatura minúscula. A fragrância natural do seu corpo era um cheiro picante e raivoso como aquele de lascas frescas de lápis. - Ele mal pode ficar de pé.
Sammy olhou por cima da mãe, tentando obter uma visão melhor do pobre Josef Kavalier no seu terno largo de tweed. Sabia vagamente que tinha primos tchecos. Mas sua mãe não dissera uma palavra sobre algum deles vir em visita, menos ainda dividir a cama (...). Não estava seguro de como San Francisco entrava na história.
- Muito bem -disse a mãe (...), aparentemente satisfeita por ter empurrado Sammy para os 12 centímetros na extremidade leste do colchão. Ela se virou para Josef Kavalier. - Venha cá. Quero dizer-lhe algo.
Agarrou suas orelhas como se estivesse pegando uma moringa pelas alças e amassou cada uma de suas bochechas com um beijo.


"(...) A grande carreira de Kavalier & Clay -e a verdadeira história do nascimento do Escapista- começou em 1939, pelo final de outubro, na noite em que a mãe de Sammy irrompeu no seu quarto (...)"


- Você conseguiu. Está bem? Está aqui.
- Tudo bem -falou o sobrinho. Não parecia convencido.
Ela lhe deu uma toalha e saiu. Assim que ela se foi, Sammy retomou alguns centímetros preciosos de colchão enquanto seu primo ficava parado, esfregando as faces contundidas. Depois de um momento, a sra. Klayman desligou a luz da cozinha e eles ficaram no escuro. Sammy ouviu seu primo aspirar fundo e soltar lentamente o ar. A pilha de jornais crepitou e caiu no chão com um baque surdo de derrota. Os botões do seu paletó tiniram contra as costas de uma cadeira; suas calças farfalharam enquanto saía de dentro delas; deixou cair um sapato, depois o outro. Seu relógio de pulso repicou contra o copo d'água na mesa de cabeceira. Então ele e um sopro de ar gelado entraram para baixo das cobertas, trazendo o odor de cigarro, sovaco, lã úmida e de uma coisa doce e algo nostálgica que Sammy identificou como cheiro, no bafo de seu primo, de ameixas secas dos restos do lingote de bolo de carne "especial" da sua mãe -ameixas secas eram apenas uma pequena parte do que o fazia tão especial- que ele a vira embrulhar com uma folha de papel encerado e colocar o pacote sobre um prato na Frigidaire. Então ela sabia que o sobrinho chegaria esta noite, o esperava para o jantar e nada dissera a respeito para Sammy.
Josef Kavalier instalou-se de costas sobre o colchão, clareou a garganta uma vez, enfiou os braços sob a cabeça e então, como se estivesse sido desplugado, parou de se mexer. (...) O Big Ben na mesinha tiquetaqueava com força. A respiração de Josef engrossou e ficou mais lenta. Sammy se indagava como alguém podia adormecer com tanto abandono quando seu primo falou.
- Assim que conseguir algum dinheiro, vou encontrar um alojamento e deixar a cama -falou. Seu sotaque era vagamente germânico, com estranhos vestígios de escocês.
- Isto seria ótimo -disse Sammy. - Você fala bem o inglês.
- Obrigado.
- Onde aprendeu?
- Prefiro não dizer.
- É um segredo?
- É uma questão pessoal.
- Pode me dizer o que fazia na Califórnia? -perguntou Sammy. - Ou é informação confidencial também?
- Eu estava atravessando do Japão.
- Japão! -Sammy ficou morrendo de inveja. Nunca tinha ido mais longe do que a Buffalo com suas pernas de canudinhos de refresco, nunca empreendera uma travessia mais traiçoeira do que a daquela faixa flatulenta de um verde venenoso que separa o Brooklyn da ilha de Manhattan. Naquela cama estreita, (...) nos fundos de um apartamento num edifício solidamente de classe média baixa na Ocean Avenue, com o ronco de sua avó sacudindo as paredes como um bonde que passa, Sammy sonhava os costumeiros sonhos do Brooklyn de vôo, transformação e escape. Sonhava com feroz maquinação, transmutando-se num importante romancista americano, ou numa pessoa famosa sofisticada, como Clifton Fadiman, ou talvez num heróico médico; ou aperfeiçoando, através da prática e da mera força de vontade, os poderes mentais que lhe dariam um controle extraordinário sobre os corações e as mentes dos homens. Na gaveta de sua mesa estavam -e estavam ali havia muito tempo- as primeiras 11 páginas de um imenso romance autobiográfico que se intitularia ou (à maneira perelmaniana) "Através do Vidro, Obscuramente" ou (à maneira dreiseriana) "Desencanto Americano". Tinha devotado um embaraçoso número de muda concentração -a testa franzida, a respiração presa- ao desenvolvimento dos poderes latentes do seu cérebro para a telepatia e o controle mental. E se empolgara com aquela Ilíada de heróis médicos, "Os Caçadores de Micróbios", dez vezes pelo menos. Mas, como a maioria dos nativos do Brooklyn, Sammy se considerava um realista e (...) seus planos de escape se centravam na obtenção de fabulosas somas de dinheiro.
A partir dos seis anos de idade, ele vendera de porta em porta sementes, doces, plantas de estufa, líquidos de limpeza, polidores de metal, assinaturas de revistas, pentes inquebráveis e cadarços de sapatos. Num laboratório de Zarka sobre a mesa da cozinha, inventou pregadores de botões, abridores de garrafas geminados e ferros de passar sem calor quase funcionais. Nos últimos anos, a atenção comercial de Sammy fora atraída pelo campo da ilustração comercial. Os grandes ilustradores comerciais e desenhistas de quadrinhos -Rockwell, Leyendecker, Raymond, Caniff- estavam no seu zênite e havia uma impressão geral no exterior de que, numa prancha de desenho, um homem podia não só ganhar bem a vida, mas também alterar a própria textura e o tom do ânimo nacional. No armário de Sammy havia dúzias de blocos de papel jornal vagabundo recheados com cavalos, índios, heróis do futebol, macacos inteligentes, Fokkers, ninfas, foguetes lunares, vaqueiros, sarracenos, florestas tropicais, ursos ferozes, estudos das dobras nas roupas das mulheres, as mossas nos chapéus dos homens, as luzes nas íris humanas, as nuvens no céu do Oeste. Seu domínio da perspectiva era tênue, seu conhecimento da anatomia humana dúbio, seu traço geralmente vago -mas era um ladrão empreendedor. Recortava páginas ou seções favoritas dos jornais e das revistas de quadrinhos, que colava num caderno gordo: mil poses e estilos exemplares. Fez uso extensivo de sua bíblia de recortes na confecção de uma tira falsificada de "Terry e os Piratas" chamada "Mares do Sul da China", desenhada em imitação fiel do grande Caniff. Vampirizou Raymond para fazer algo que chamou de "Pimpinela dos Planetas" e Chester Gould para uma tira de um agente federal de mandíbula cerrada chamado "Doyle Dedos de Aço". Tentou surrupiar de Hogarth e Lee Falk, de George Herriman, Harold Gray e Elzie Segar. Guardava seu mostruário de tiras numa pasta de papelão debaixo da cama, esperando por uma oportunidade, por sua grande chance de se apresentar.
- Japão! -disse de novo, sentindo uma vertigem diante do exótico perfume caniffiano que pairava sobre o nome. - O que é que você estava fazendo lá?
- A maior parte do tempo sofrendo do intestino -disse Josef Kavalier. - E ainda sofro. Particularmente de noite.
Sammy meditou sobre esta informação por um momento e então chegou mais perto da parede.
- Diga-me, Samuel -falou Josef Kavalier. - Quantas amostras preciso ter no meu portfólio?
- Samuel não. Sammy. Não, me chame de Sam.



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