São Paulo, sábado, 02 de fevereiro de 2008

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Livros - Crítica/"O Planeta Diário"

Antologia lembra época em que mundo era mais divertido

Livro mostra humor politicamente incorreto de Reinaldo, Hubert e Cláudio Paiva

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando o jornal "O Planeta Diário" apareceu nas bancas do Brasil em dezembro de 1984, a onda do "politicamente correto" ainda não havia tomado conta da intelectualidade do mundo ocidental e o país extravasava liberdade com a aguardada eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, que ocorreria dias depois, e o conseqüente fim do regime militar.
Esses dois fatores possibilitaram o sucesso arrebatador do tipo de humor deliciosa e arrasadoramente debochado e irreverente que Reinaldo, Hubert e Cláudio Paiva praticaram no "Planeta Diário".
Em épocas mais recentes seria muito mais difícil achar graça ostensiva de brincadeiras devastadoras que tivessem como alvo "afrodescendentes", "portadores de necessidades especiais" e outros grupos demográficos que passaram a ser classificados com eufemismos criados para evitar demonstrações de preconceito. Folhear neste final da primeira década do século 21 a recém-lançada antologia de "O Planeta Diário" dá a sensação nítida de que o mundo ficou muito menos divertido por causa da moda do politicamente correto.

Censura "correta"
Foi durante a década de 90 que se disseminou o hábito de censurar formal ou informalmente qualquer brincadeira ou palavra que pudesse ser interpretada por alguém como ofensiva a minorias étnicas, de gênero ou de outra espécie.
Começou nos EUA, onde diversos acadêmicos argumentaram que a linguagem determina o comportamento e o pensamento das pessoas e que, para evitar a reprodução de estereótipos negativos que pudessem redundar em desvantagens ou desconforto para alguns grupos de pessoas, o ideal seria torná-la a mais neutra possível.
Assim, foram sumindo do vocabulário (pelo menos da imprensa e da academia) termos como "deficiente físico", "Maria vai com as outras", "preto", "aidético", "aleijado". O governo brasileiro chegou a publicar, em 2004, uma cartilha com palavras e expressões censuráveis, que deveriam ser evitadas ao menos no serviço público.
Qual seria hoje a reação social e jurídica a manchetes como "Candidatos epiléticos se debatem na TV", "Candidatos gays dão tudo na reta final", "Nelson Ned é o novo Menudo", "Wilza Carla explode na Terça-Feira Gorda", "Polícia ouve depoimento das testemunhas de Jeová", "Israel faz atentado com rabinos-bomba" e outras jóias planetárias?
Christie Davies, da Universidade de Reading (Reino Unido), é um dos autores contemporâneos mais destacados na análise da relação entre humor e moralidade. Ele tem exposto sua preocupação com os efeitos potencialmente deletérios para a convivência humana resultante da intolerância em relação a gracejos que alguns possam considerar insultuosos.
Davies disse recentemente que muitos ambientes de trabalho nos EUA, em especial universidades e outros centros de estudo acadêmico, lembram-no do que ele via nos países da antiga Cortina de Ferro, em que as pessoas receavam fazer algum tipo de pilhéria que pudesse desagradar algum agente do Estado comunista.
O episódio do cartum do profeta Maomé publicado pelo jornal dinamarquês Jyland-Posten em 2005, que desencadeou uma onda de protestos violentos de muçulmanos pelo mundo, é um exemplo extremo do que pode resultar da intransigência com a graça. O humor é em geral inofensivo e quase sempre liberador. "O Planeta Diário" foi um marco importante da vida nacional quando era possível rir de quase tudo às claras. Durante o regime militar, as piadas circulavam clandestinamente e ajudavam na resistência à opressão, como ocorreu incontáveis vezes na história da humanidade.
A retrospectiva que a Desiderata põe à disposição do público é um estímulo à reflexão a respeito daqueles tempos, mas também dos dias atuais e de como se pode empobrecer espiritualmente quando se atenta contra o direito de brincar.


CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA é livre-docente e doutor em comunicação pela USP e diretor de relações institucionais da Patri Políticas Públicas.

O PLANETA DIÁRIO
Autores:
Cláudio Paiva, Hubert Aranha e Reinaldo Figueiredo
Editora: Desiderata
Quanto: R$ 50, em média (348 págs.)
Avaliação: bom


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