São Paulo, sexta-feira, 02 de março de 2001

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ANÁLISE

Indústria lucra com as "edições de autor"

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

Não deixa de ser irônico que Hollywood, desde os anos 20 a inimiga número um do controle dos diretores sobre o resultado final dos filmes, hoje se dedique a industrializar, precisamente, as "edições de autor".
Para o cinéfilo é uma vantagem proporcionada basicamente pelas novas tecnologias digitais. A possibilidade de recuperar velhos filmes, restaurando partes danificadas inclusive a partir de cópias, e criar novas matrizes digitais, aliada ao sucesso do DVD (que se fixou como um formato para colecionadores, o que nunca chegou a ocorrer com o home video), tem recolocado em circulação versões que, em outros tempos, não seria possível nem mesmo imaginar.
O exemplo mais ilustre é provavelmente o de "A Marca da Maldade" (1958), de Orson Welles. Na ocasião, o diretor enviou um longo memorando à Universal, pedindo alterações na versão do filme (sobre a qual Welles não tinha controle). Esse memorando foi a base da recente remontagem, que agora tende a se consolidar como versão definitiva.
Charlton Heston, responsável por Welles ter dirigido esse filme, também financiou a recuperação de "Major Dundee" (1965), seguindo as indicações de seu diretor, Sam Peckinpah. Outro mecenas desse tipo de operação tem sido Martin Scorsese. O trabalho é mais fácil quando o diretor está vivo, caso de William Friedkin com seu "O Exorcista".
De certa forma, o fenômeno demonstra duas coisas. A primeira é que Hollywood tem uma capacidade enorme de ganhar dinheiro com qualquer coisa, inclusive "autores", isto é, a classe de gente que mais combateu desde que Irving Thalberg, nos anos 20, retalhou "Ouro e Maldição", de Erich von Stroheim, reduzindo-o de sete para duas horas.
A segunda é, justamente, a força do "autor". Todo mundo conhece as histórias de John Ford. Ele dizia que montava o filme na câmera. Isto é, filmava apenas aquilo que precisava, sem fazer planos "de cobertura" (ângulos sobressalentes, para uso eventual na montagem), a fim de que o produtor não dispusesse de opções.
Mas nem todo mundo tinha a força de John Ford junto aos estúdios, e a maior parte dos cineastas era forçada a aceitar o corte final do estúdio. O próprio Orson Welles morreu lamentando as navalhadas da RKO em seu "Soberba" (1942).
Hoje, ao menos alguns desses filmes desfigurados pelos estúdios começam a circular novamente, num momento em que a qualidade fotográfica original pode não raro ser reencontrada, e o som, remasterizado. É atrás dessas versões, e não das originais, controladas pelos estúdios, que vão os usuários de DVD. Se o ganho das produtoras tende a ser grande, não será menor o lucro da cultura cinematográfica com essa história.


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