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Mahfouz enlaça a antiguidade ao destino
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Os leitores habituais do escritor egípcio Naguib Mahfouz podem estranhar seu "O Jogo do Destino", a ser lançado durante a próxima Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no
mês que vem. Ao contrário da
prosa realista com que retratou a
pequena burguesia do Cairo e lhe
valeu o epíteto de "Balzac do Egito", o que temos aqui é um mergulho no tempo dos faraós e das
pirâmides do Antigo Império.
"O Jogo do Destino" é o primeiro romance de Mahfouz, que se
inspirou em Walter Scott. Foi escrito em 39, época em que o autor
ambicionava recontar toda a história do Egito. O projeto abrangeria 30 volumes. Escreveu três, o
segundo dos quais ainda em fase
de tradução pela Record.
O período escolhido nesta estréia nas narrativas longas foi o do
reinado do faraó Khufu, da 4ª dinastia do Antigo Império. Khufu
é o nome egípcio do governante
que depois passou a ser chamado
de Quéops, pelos gregos.
Khufu ou Quéops mandou
construir a pirâmide de Gizé.
Pouco se sabe sobre a vida dele,
exceto que provavelmente reinou
por 24 anos e conduziu seu Exército em combates no Sinai. Mahfouz teve, assim, ampla margem
para a invenção.
A primeira das liberdades que
tomou foi a de imaginar o sucessor, Dedef Rá, não como filho do
faraó, mas de um sacerdote do
deus Sol. Segundo historiadores, é
provável que Dedef Rá, ou DjedefRe, fosse mesmo filho de Khufu
com uma de suas muitas mulheres.
Mas, no romance, Khufu recebe
a notícia do nascimento do predestinado ao trono por meio de
uma profecia. Furioso, ele se dirige a Awn (cidade onde estava o
recém-nascido) acompanhado de
cem carros de guerra e 200 cavaleiros da guarda real. A ação é descrita como a "terrível batalha entre Khufu e o destino".
Podemos ler "O Jogo do Destino" como um apólogo, uma narrativa enlaçada por uma conclusão moral. Sabemos que Khufu
falhará por causa de sua "hubris",
sua arrogância: arrostando o destino e invadindo a cidade de Awn,
ele só contribui para que a profecia se cumpra.
O sacerdote de Rá, percebendo
o perigo, envia o filho para longe,
junto com a mulher e a criada Zaya. Mas, para escapar de um ataque de beduínos, Zaya rapta a
criança e topa com as tropas de
Khufu. Sem nada saber, o próprio
faraó acolhe a criada e o bebê.
A trajetória de Dedef se entrelaça cada vez mais com a de Khufu.
Zaya se casa com o inspetor-geral
das pirâmides. Mais tarde,o herói
apaixona-se pela princesa Meressankh, sem saber que ela é filha do
faraó.
Mahfouz abusa dos recursos romanescos: a profecia e a vã tentativa de mudar o destino; o rapto
da criança predestinada; o engano
do herói, que julga ser a amada
pessoa de status inferior e, descobrindo-lhe a identidade, se vê impossibilitado de usufruir seu
amor.Tudo isso contribui para a
história ganhar um ar de lenda.
Ao abandonar seu projeto "histórico" para se dedicar à descrição
do Egito contemporâneo, o escritor se aproximava aos poucos dos
romances à Balzac, à Dickens, à
Tolstói. Nessas narrativas, os personagens são responsáveis por
seu destino, ainda que este possa
ser moldado por forças sociais e
econômicas.
O romance psicológico realista,
de cunho social, era recente no
Egito. Nascera ali poucas décadas
antes de Mahfouz lançar "O Jogo
do Destino". O escritor se esforçava para encontrar a própria voz e
achar o tom da nova forma de
narração, que ele ajudaria a aperfeiçoar.
Em 1988, tornou-se o primeiro
autor em língua árabe a conquistar o Prêmio Nobel de literatura.
A editora Record pretende relançar dois volumes ("Entre Dois Palácios" e "O Jardim do Passado")
da trilogia do Cairo, considerada
um ponto alto da carreira de
Mahfouz. É um excelente contraponto para refletirmos sobre a
trajetória do escritor: a vocação
desde cedo cultivada, os projetos
redirecionados, a busca pela perfeição e a chance, a poucos outorgada, da consagração em vida.
Assim está escrito.
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