São Paulo, sábado, 02 de março de 2002

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Mahfouz enlaça a antiguidade ao destino

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Os leitores habituais do escritor egípcio Naguib Mahfouz podem estranhar seu "O Jogo do Destino", a ser lançado durante a próxima Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no mês que vem. Ao contrário da prosa realista com que retratou a pequena burguesia do Cairo e lhe valeu o epíteto de "Balzac do Egito", o que temos aqui é um mergulho no tempo dos faraós e das pirâmides do Antigo Império.
"O Jogo do Destino" é o primeiro romance de Mahfouz, que se inspirou em Walter Scott. Foi escrito em 39, época em que o autor ambicionava recontar toda a história do Egito. O projeto abrangeria 30 volumes. Escreveu três, o segundo dos quais ainda em fase de tradução pela Record.
O período escolhido nesta estréia nas narrativas longas foi o do reinado do faraó Khufu, da 4ª dinastia do Antigo Império. Khufu é o nome egípcio do governante que depois passou a ser chamado de Quéops, pelos gregos.
Khufu ou Quéops mandou construir a pirâmide de Gizé. Pouco se sabe sobre a vida dele, exceto que provavelmente reinou por 24 anos e conduziu seu Exército em combates no Sinai. Mahfouz teve, assim, ampla margem para a invenção.
A primeira das liberdades que tomou foi a de imaginar o sucessor, Dedef Rá, não como filho do faraó, mas de um sacerdote do deus Sol. Segundo historiadores, é provável que Dedef Rá, ou DjedefRe, fosse mesmo filho de Khufu com uma de suas muitas mulheres.
Mas, no romance, Khufu recebe a notícia do nascimento do predestinado ao trono por meio de uma profecia. Furioso, ele se dirige a Awn (cidade onde estava o recém-nascido) acompanhado de cem carros de guerra e 200 cavaleiros da guarda real. A ação é descrita como a "terrível batalha entre Khufu e o destino".
Podemos ler "O Jogo do Destino" como um apólogo, uma narrativa enlaçada por uma conclusão moral. Sabemos que Khufu falhará por causa de sua "hubris", sua arrogância: arrostando o destino e invadindo a cidade de Awn, ele só contribui para que a profecia se cumpra.
O sacerdote de Rá, percebendo o perigo, envia o filho para longe, junto com a mulher e a criada Zaya. Mas, para escapar de um ataque de beduínos, Zaya rapta a criança e topa com as tropas de Khufu. Sem nada saber, o próprio faraó acolhe a criada e o bebê.
A trajetória de Dedef se entrelaça cada vez mais com a de Khufu. Zaya se casa com o inspetor-geral das pirâmides. Mais tarde,o herói apaixona-se pela princesa Meressankh, sem saber que ela é filha do faraó.
Mahfouz abusa dos recursos romanescos: a profecia e a vã tentativa de mudar o destino; o rapto da criança predestinada; o engano do herói, que julga ser a amada pessoa de status inferior e, descobrindo-lhe a identidade, se vê impossibilitado de usufruir seu amor.Tudo isso contribui para a história ganhar um ar de lenda.
Ao abandonar seu projeto "histórico" para se dedicar à descrição do Egito contemporâneo, o escritor se aproximava aos poucos dos romances à Balzac, à Dickens, à Tolstói. Nessas narrativas, os personagens são responsáveis por seu destino, ainda que este possa ser moldado por forças sociais e econômicas.
O romance psicológico realista, de cunho social, era recente no Egito. Nascera ali poucas décadas antes de Mahfouz lançar "O Jogo do Destino". O escritor se esforçava para encontrar a própria voz e achar o tom da nova forma de narração, que ele ajudaria a aperfeiçoar.
Em 1988, tornou-se o primeiro autor em língua árabe a conquistar o Prêmio Nobel de literatura. A editora Record pretende relançar dois volumes ("Entre Dois Palácios" e "O Jardim do Passado") da trilogia do Cairo, considerada um ponto alto da carreira de Mahfouz. É um excelente contraponto para refletirmos sobre a trajetória do escritor: a vocação desde cedo cultivada, os projetos redirecionados, a busca pela perfeição e a chance, a poucos outorgada, da consagração em vida. Assim está escrito.


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