São Paulo, segunda, 2 de março de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS LANÇAMENTOS
Rossellini agarra leitor a uma distância discreta

Steven Meisel/Reprodução
Isabella Rossellini posa para coleção outono-inverno Dolce&Gabana


AMY M. SPINDLER
do 'New York Times Review of Books'

Não há nada de indiscreto sobre os charmes de Isabella Rossellini no livro "Some of Me" (Um Pouco de Mim, Random House, Nova York, 179 págs, US$ 30). Ela passeia por suas memórias com a placidez de um doce sonambulismo.
A cadência de seu texto é suave como sua voz, aliás, muito parecida com a de sua famosa mãe, Ingrid Bergman. Por isso, mal podemos esperar que o livro seja gravado em fitas cassete.
A autobiografia é, na verdade, um longo bate-papo, e você capta a história vagarosamente, como se fosse takes de um filme em câmera lenta. E Rossellini é a anfitriã, no mesmo papel que interpretou em "Big Night", seu último filme.
Como convidado, você recebe total atenção em um jantar das 1.001 noites, envolto em uma sala enfumaçada, com vinho tinto transbordando do copo.
Então, ela começa a falar da família e dos filmes de seu pai, Roberto Rossellini. Debruça o corpo sobre a mesa, revelando um sutiã preto à moda siciliana, e diz que é uma expressão étnica da "postura afro de Angela Davis".
Ela vai fornecendo dicas sobre seus antigos amantes, Martin Scorsese, David Lynch e Gary Oldman. Beberica o vinho e fala da profissão de modelo e da demissão da Lancôme pelo inexplicável ato de ter chegado aos 40.
Sem querer quebrar o êxtase, você aguarda o desenrolar do bate-papo, enquanto os apelos continuam, monólogos inteiramente ficcionais, envolvendo os iconoclastas que tocaram sua vida.
Você prova o vinho com uma certa frustração e descobre que o livro é uma longa provocação. Mas, no banquete dos deuses, ainda há muito vinho, a anfitriã e até mesmo música, porém, pouca coisa para comer.
Não é estranho encontrar uma autobiografia autocomiserativa -o que mais seria possível esperar? Rossellini oferece petiscos sobre a família, amigos e amantes com tanta economia que o livro acaba sendo um relatório pessoal, sem atingir realmente os interesses do leitor.
A falta de atenção aos detalhes é uma qualidade curiosa em alguém que decidiu escrever um livro desse gênero.
Quem não gostaria de manter uma conversa real, sem ficções, com Lynch, Scorsese ou com o pai ou com a mãe? Como seria a vida familiar com esses diretores? Quais os comentários de Richard Avedon, Bruce Weber ou Steven Meisel durante as sessões fotográficas?
Existem algumas historietas preciosas, que é quase impossível deixar de lado. Como a de Scorsese, que desmaiou ao ver sangue do dedo picado pelo médico. Rossellini gritou: "Você viu o que está fazendo conosco?".
Há também uma história de Roberto Rossellini às voltas com o realismo. "O entusiasmo de papai ao encontrar um fio de cabelo vermelho em um casaco, que lembrava o pelo de um cavalo preto, o levou a ver o animal e a descrevê-lo como se fosse um cavalo de cor vermelha."
Ela também não explica com clareza a separação de Lynch. Rossellini chamou Scorsese para que soubesse do fato.
O diretor disse que já sabia, principalmente quando viu Lynch beijá-la diante da imprensa, no momento em que ele acabava de ganhar a Palma de Ouro, no Festival de Cannes.
"Depois de vivermos cinco anos juntos, se David escolheu mostrar seu amor diante dos jornalistas, obviamente é porque tinha algo a esconder."
As fotos de Scorsese e de Lynch revelam mais que a conversa fiada de Rossellini -ela os trata como diretores ou amigos imaginários-, mas ambos posam ao seu lado com os rostos cobertos.
A melhor maneira de entender "Some of Me" é ler o livro como a carta de um amigo célebre, que, de alguma forma, pensa que é a celebridade que mantém as pessoas interessadas em sua vida.
Rossellini se mostra, depois se arrepende, e torna a se esconder. Por ser muito charmosa, você a perdoa e espera que cada vez mais exponha seu egoísmo.
Isso poderia explicar os bate-papos vazios sem nenhuma realidade e a ênfase sobre a carreira de modelo, em vez de explicar seus casamentos. Os lances da infância são evocativos e sem detalhes surpreendentes.
Mas a distância mantida com o leitor pode ser alcançada em algumas tiradas interessantes. Quando escreve sobre o primo Franco, que morreu do que chama "o toque da Aids".
Ela diz que "essa definição traz uma imagem sem repressão e para ele era um modo elegante de ter alguma coisa -é o método Rosselliniano, que pode ser outra prova de nossa aristocracia. Uma gota de champanhe, uma pitada de açúcar, um traço de cocaína".
No momento em que a autobiografia reveladora está sendo amplamente criticada, a discrição de Rossellini pode ser vista como algo restaurador.
Antes de contar a reação de Scorsese sobre Lynch e da separação, ela até se desculpa: "É um caso ligeiramente indiscreto, porém, mostra como é a atitude de um diretor de verdade".
Em muitas declarações, Rosselini revela opiniões pessoais, mas logo muda de assunto, e recomeça o bate-papo furado.
Se o livro fosse um jantar de gala, naturalmente você poderia cravá-la de perguntas para matar as curiosidades. Mas não é o caso. É apenas "Some of Me", e não a Rossellini total que os leitores gostariam de conhecer.


Tradução Ana Maria Guariglia



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.