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São Paulo, quarta-feira, 02 de abril de 2003

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CINEMA

Indústria da miséria

Carlos Mancini/Divulgação
Cenas de "Quanto Vale ou É por Quilo?", longa que o cineasta Sergio Bianchi está filmando, com locações em São Paulo



Em novo filme, Sergio Bianchi traça paralelo entre comércio de escravos e a economia movimentada por entidades de assistência social no Brasil


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Esqueça o samba e a cachaça. O produto nacional por excelência é a miséria no novo filme do cineasta Sergio Bianchi, 57, atualmente em produção em São Paulo.
Primeiro título na linha de sucessão de "Cronicamente Inviável" (2000), até aqui o mais polêmico entre os quatro longas do diretor, "Quanto Vale ou É por Quilo?" pretende esmiuçar as entranhas do terceiro setor.
O trabalho voluntário e as ONGs (organizações não-governamentais) são encarados no filme por um ângulo sombrio -servem para disfarçar operações financeiras fraudulentas, enriquecer pessoas sem escrúpulos e apaziguar consciências ligeiramente atormentadas pela noção do fosso que divide o país entre muito ricos e muito pobres.
Bianchi diz que a idéia original era adaptar um conto de Machado de Assis ("Pai contra Mãe"), mas o resultado final do roteiro -que ele assina com Eduardo Benaim, Newton Canito e Sabina Anzuategui- guarda pouca semelhança com a obra literária.
A história acabou sendo "um arrebanhado do que a realidade está nos dando", afirma o cineasta. Observando "esse mercado enorme, amplificado, diversificado do terceiro setor", Bianchi teve a sensação de que "pela nossa incompetência de ter qualquer outro produto de venda, o único produto que temos é a nossa miséria, nossa capacidade de criar um cuidado com os pobres".
O diretor fez desse o ponto-chave de seu filme. E decidiu criar um pêndulo histórico que oscila entre o momento atual e o século 19, quando a escravidão é um fato no Brasil. O paralelo é claro -os miseráveis de hoje seriam uma mercadoria em torno da qual a economia gira, assim como os escravos o foram no passado.
"A miséria é depressiva, é deprimente, é feia. Não precisa esconder embaixo do tapete. Mas vender? Transformá-la em forma de sustento? É algo bruto", afirma Bianchi.

Realidade
O cineasta afirma que não é dado a muitas pesquisas para preparar seus filmes, mas diz ter adaptado de exemplos da realidade os personagens e situações de "Quanto Vale ou É por Quilo?".
"Fiz as pesquisas necessárias para não me sentir imoral e ficar um pouco mais alicerçado na realidade objetiva. Todas essas ONGs, quer dizer, esses grupos de pessoas que aparecem no filme exercendo auxílio aos menos favorecidos são coisas que vi."
Viu e questionou, diz Bianchi. "Tive várias reuniões com associações que cuidam dos moradores de rua. Eu perguntava a eles: por que vocês não usam essa energia toda para descobrir qual é o departamento da prefeitura que tem verba para esse trabalho?"
O cineasta diz ter chegado à conclusão de que os voluntários "querem ter um misto de satisfação pessoal, se sentir pessoas boas" e também "têm um pouco de medo". "É como se [com o trabalho voluntário] dissessem: "Não me sequestre, não me assalte, porque eu participo, eu colaboro"."
Sua crítica, afirma, não é "à tomada de consciência da classe média e da burguesia brasileiras de que existe uma massa de pessoas sem cultura, sem escola, sem nada". "Ninguém pode ser contra isso, mas transformar o ser humano e sua miséria num produto é uma coisa absurda."
As ONGs fictícias de "Quanto Vale ou É por Quilo?" se dedicam à formação profissional de jovens carentes e à assistência a moradores de rua.
O personagem-central, Marco Aurélio, interpretado por Herson Capri, dirige uma empresa em sociedade com Ricardo (Caco Ciocler). É um exemplo de golpista que faz da assistência social um filão para enriquecer e alcançar prestígio social.
Desempenhando papéis menores, 120 atores participam do longa-metragem, cuja produção está orçada em "pouco mais de R$ 1 milhão".
Bianchi sabe que, ao adotar a crítica ao trabalho voluntário, prepara um filme na contracorrente da valorização do engajamento popular na resolução dos problemas sociais brasileiros.
"Tudo isso eu criei antes da vitória do Lula [nas eleições presidenciais de 2002". Nos primeiros meses do governo, houve essa explicitação de uma coisa existencialista, populista, muito choro, muita gente abraçando criança, muita gente viajando de avião e depois se jogando no povo. É uma coisa que me assusta um pouco."
Mas o diretor afirma que seu filme não é uma crítica à atuação do governo federal. "Não há conexão direta [entre o filme e as políticas sociais do governo]. Não é uma crítica direta ao PT, até porque o PSDB fez a mesma coisa. É só uma questão de estilo. Quem sabe [o PSDB] não tenha sentido muito prazer em abraçar os pobres, uivar, chorar."
Na autocrítica à economia do cinema nacional, Bianchi mantém o tom áspero: "Estamos criando gerações de cineastas que não conseguem produzir e se acoplam ao Estado, para salvar o cinema. Talvez, lá no íntimo, exista uma vontade de que esse problema não se resolva porque, no dia em que se resolver, toneladas de pessoas perdem o emprego."


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