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O andarilho e sua sombra
EDUARDO GIANNETTI
Sempre que posso, saio a pé
pelas ruas da cidade. Onde
quer que more, com ou sem
trânsito, é assim. Nada para
mim substitui o contato direto
com a rua, a ótica nua do pedestre e o exercício suave da
condição de bípede reflexivo.
Adoro quando me acontece de
poder caminhar até o local de
algum compromisso ou encontro e considero um privilégio
inconfessável o luxo de perambular a esmo, sem propósito
definido, pelo simples prazer
peripatético de espiar, devanear e ruminar.
Não é sempre, porém, que me
permito o luxo desse esbanjamento. Só quando sinto que
cumpri alguma tarefa e, de
certa forma, conquistei o direito de vagabundear um pouco
por aí. Na era do politicamente correto e da máxima eficiência em tudo, temo a chegada do dia em que o deleite inocente de se caminhar sem pressa, sem expectativa de ganho e
sem propósito definido seja
considerado um crime.
Um dia desses, não faz muito
tempo, eu estava a poucos
quarteirões de casa quando fui
abordado na calçada por um
homem de aparência humilde
e jeito acanhado. Não era um
mendigo. Parei e perguntei o
que era.
Ele então apontou para uma
pequena placa no canteiro de
obras de um prédio em frente e
me pediu, assim meio de lado,
se eu podia ler para ele o que
estava escrito nela. Queria saber, explicou, se estavam oferecendo emprego. Li a placa em
voz alta ("vende-se material
usado"), lamentei que não era
o caso e sugeri que fosse ao vigia da obra perguntar se estavam precisando de gente. Nunca mais o vi.
O episódio em si não durou
mais do que um par de minutos, talvez nem isso. Mas a situação daquele homem simples procurando emprego, o
dedo furtivo apontando a placa e a interrogação muda estampada em seu rosto expectante têm me acompanhado de
forma intermitente desde
aquela manhã.
A sensação imediata, enquanto caminhava de volta
para casa, foi de um mal-estar
difuso e uma ponta de remorso. A estranha dignidade daquele gesto difícil mexeu comigo. Como aquele sujeito teria
vindo parar ali? Teria família,
filhos, dívidas? Ele não parecia
desesperado. Mas até que ponto, eu me perguntava, as aparências revelavam o seu estado?
Comecei a pensar nas dificuldades e embaraços inusitados que alguém como ele enfrenta cotidianamente. Como
se vira um analfabeto no cipoal urbano de São Paulo? Como faz para encontrar um endereço, apanhar o ônibus certo, contar o troco, não ser trapaceado na conta da quitanda?
O analfabetismo numa grande cidade chega a ser uma deficiência tão debilitadora
quanto a cegueira ou a surdez.
É todo um universo de informação e oportunidades que se
fecha, que nunca se abriu. Como nós que lemos e escrevemos
como quem respira e caminha
podemos sequer vislumbrar o
que possa ser isso?
E por que diabos não fui
mais solidário? O que me custaria, afinal, ser mais solícito e
tentar ajudá-lo a se orientar
um pouco? Podia, ao menos,
ter perguntado se precisava de
dinheiro para tomar uma condução. Inverti, na imaginação,
os papéis: o que eu, no lugar
dele, esperaria de alguém como eu? Vontade (abstrata) de
voltar no tempo, ser melhor do
que fui. Era tarde. Será diferente da próxima vez?
Logo, porém, as brigadas da
racionalização, esse grande esporte nacional, entraram em
campo. Mas por que essa agora, pensei comigo, de me preocupar justamente com aquele
total desconhecido? Por que
logo ele em vez de outro, em
vez de centenas de milhares
em situação ainda mais deplorável? Por que ele em vez de 20
milhões de adultos analfabetos
absolutos, sem contar os funcionais, registrados no último
censo? Só por que alguma coisa no seu jeito agradou o meu
senso estético? Seria transformar a benevolência numa
enorme loteria.
O sentimentalismo, refleti,
não pode tomar conta. O impulso é cego e contraproducente. "O caminho do inferno",
adverte são Bernardo, "está repleto de boas intenções". Se a
questão for mesmo ajudar o
próximo, confabulou o guardião da racionalidade em
mim, existem formas institucionais, mais inteligentes e
menos impulsivas, de se fazer o
bem. O altruísmo amador é
um perigo: a ética não pode
prescindir da lógica. Não foi à
toa que estudei economia tantos anos. A ação tem de ser
consequente.
Ademais, prossegui elocubrando, e se tudo aquilo fosse
parte de algum tipo de golpe
ou armadilha? E se ele ficasse
ofendido com o meu interesse
em saber mais sobre ele e oferecer ajuda? E se ele não fosse
analfabeto, mas disléxico?
Não, meus ombros não suportam o mundo...
O fato espantoso, lembrei em
seguida, é que em números absolutos existem mais analfabetos no Brasil hoje -o Brasil de
FHC e dos 500 anos do descobrimento -do que havia no
Brasil que aprendemos a desdenhar na escola -o Brasil da
República Velha e das oligarquias agrárias, o Brasil do "café com leite" e do "para os
amigos tudo, para os inimigos
a lei". O que esses velhos oligarcas diriam se pudessem nos
ver agora? O que as escolas do
futuro dirão e ensinarão sobre
a nossa época? Sobre a pseudomodernidade de nossas parabólicas, computadores e
bóias-frias do giz?
Foi na sequência dessa esgrima restauradora do decoro íntimo -o exercício tipicamente
machadiano de se chegar a um
armistício convincente com a
própria consciência -que me
voltou a fantasia de algum dia
organizar uma antologia de
textos mostrando como, ao
longo dos séculos, a obsessão
com o resgate do ensino sempre foi uma tônica absolutamente central no pensamento
e discurso político brasileiros.
Não é mesmo notável que José Bonifácio, o Patriarca da
Independência, já se erguesse
aos brados contra a precariedade da nossa educação básica e clamasse às elites responsáveis da jovem pátria que sem
resolver essa questão o país
não tinha jeito? A impressão
que se tem, comparando o dito
e o feito de lá para cá, é que
quanto mais tenebrosa a realidade, mais luminoso o discurso.
De Rui Barbosa a Manoel
Bonfim na República Velha,
passando por Mário Henrique
Simonsen e Hélio Jaguaribe no
pós-guerra, sem esquecer, é
claro, Eugenio Gudin e Darcy
Ribeiro, algumas das páginas
mais empolgantes de nossos
reformadores e especialistas de
todas as épocas e filiações doutrinárias versam sobre o tema.
As eleições estão aí: que candidato poderá deixar de dar máxima prioridade à educação?
A obsessão educacional e o
"tudo pelo social" são nossos
velhos companheiros. Nada
mais justo.
No fundo é como se, a cada
nova geração, os líderes das
mais diversas correntes ideológicas se unissem no ritual de
mais uma vez arrolar as suas
estatísticas favoritas do nosso
horror educacional (sempre
um banquete de mil talheres),
prever o caos inevitável se nada for feito e apontar as soluções claras, evidentes e inovadoras do problema. Ensino básico de qualidade, estamos todos de acordo, é a resposta.
Mas qual é a questão?
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