São Paulo, quinta, 2 de abril de 1998

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O andarilho e sua sombra

EDUARDO GIANNETTI
Sempre que posso, saio a pé pelas ruas da cidade. Onde quer que more, com ou sem trânsito, é assim. Nada para mim substitui o contato direto com a rua, a ótica nua do pedestre e o exercício suave da condição de bípede reflexivo. Adoro quando me acontece de poder caminhar até o local de algum compromisso ou encontro e considero um privilégio inconfessável o luxo de perambular a esmo, sem propósito definido, pelo simples prazer peripatético de espiar, devanear e ruminar.
Não é sempre, porém, que me permito o luxo desse esbanjamento. Só quando sinto que cumpri alguma tarefa e, de certa forma, conquistei o direito de vagabundear um pouco por aí. Na era do politicamente correto e da máxima eficiência em tudo, temo a chegada do dia em que o deleite inocente de se caminhar sem pressa, sem expectativa de ganho e sem propósito definido seja considerado um crime.
Um dia desses, não faz muito tempo, eu estava a poucos quarteirões de casa quando fui abordado na calçada por um homem de aparência humilde e jeito acanhado. Não era um mendigo. Parei e perguntei o que era.
Ele então apontou para uma pequena placa no canteiro de obras de um prédio em frente e me pediu, assim meio de lado, se eu podia ler para ele o que estava escrito nela. Queria saber, explicou, se estavam oferecendo emprego. Li a placa em voz alta ("vende-se material usado"), lamentei que não era o caso e sugeri que fosse ao vigia da obra perguntar se estavam precisando de gente. Nunca mais o vi.
O episódio em si não durou mais do que um par de minutos, talvez nem isso. Mas a situação daquele homem simples procurando emprego, o dedo furtivo apontando a placa e a interrogação muda estampada em seu rosto expectante têm me acompanhado de forma intermitente desde aquela manhã.
A sensação imediata, enquanto caminhava de volta para casa, foi de um mal-estar difuso e uma ponta de remorso. A estranha dignidade daquele gesto difícil mexeu comigo. Como aquele sujeito teria vindo parar ali? Teria família, filhos, dívidas? Ele não parecia desesperado. Mas até que ponto, eu me perguntava, as aparências revelavam o seu estado?
Comecei a pensar nas dificuldades e embaraços inusitados que alguém como ele enfrenta cotidianamente. Como se vira um analfabeto no cipoal urbano de São Paulo? Como faz para encontrar um endereço, apanhar o ônibus certo, contar o troco, não ser trapaceado na conta da quitanda?
O analfabetismo numa grande cidade chega a ser uma deficiência tão debilitadora quanto a cegueira ou a surdez. É todo um universo de informação e oportunidades que se fecha, que nunca se abriu. Como nós que lemos e escrevemos como quem respira e caminha podemos sequer vislumbrar o que possa ser isso?
E por que diabos não fui mais solidário? O que me custaria, afinal, ser mais solícito e tentar ajudá-lo a se orientar um pouco? Podia, ao menos, ter perguntado se precisava de dinheiro para tomar uma condução. Inverti, na imaginação, os papéis: o que eu, no lugar dele, esperaria de alguém como eu? Vontade (abstrata) de voltar no tempo, ser melhor do que fui. Era tarde. Será diferente da próxima vez?
Logo, porém, as brigadas da racionalização, esse grande esporte nacional, entraram em campo. Mas por que essa agora, pensei comigo, de me preocupar justamente com aquele total desconhecido? Por que logo ele em vez de outro, em vez de centenas de milhares em situação ainda mais deplorável? Por que ele em vez de 20 milhões de adultos analfabetos absolutos, sem contar os funcionais, registrados no último censo? Só por que alguma coisa no seu jeito agradou o meu senso estético? Seria transformar a benevolência numa enorme loteria.
O sentimentalismo, refleti, não pode tomar conta. O impulso é cego e contraproducente. "O caminho do inferno", adverte são Bernardo, "está repleto de boas intenções". Se a questão for mesmo ajudar o próximo, confabulou o guardião da racionalidade em mim, existem formas institucionais, mais inteligentes e menos impulsivas, de se fazer o bem. O altruísmo amador é um perigo: a ética não pode prescindir da lógica. Não foi à toa que estudei economia tantos anos. A ação tem de ser consequente.
Ademais, prossegui elocubrando, e se tudo aquilo fosse parte de algum tipo de golpe ou armadilha? E se ele ficasse ofendido com o meu interesse em saber mais sobre ele e oferecer ajuda? E se ele não fosse analfabeto, mas disléxico? Não, meus ombros não suportam o mundo...
O fato espantoso, lembrei em seguida, é que em números absolutos existem mais analfabetos no Brasil hoje -o Brasil de FHC e dos 500 anos do descobrimento -do que havia no Brasil que aprendemos a desdenhar na escola -o Brasil da República Velha e das oligarquias agrárias, o Brasil do "café com leite" e do "para os amigos tudo, para os inimigos a lei". O que esses velhos oligarcas diriam se pudessem nos ver agora? O que as escolas do futuro dirão e ensinarão sobre a nossa época? Sobre a pseudomodernidade de nossas parabólicas, computadores e bóias-frias do giz?
Foi na sequência dessa esgrima restauradora do decoro íntimo -o exercício tipicamente machadiano de se chegar a um armistício convincente com a própria consciência -que me voltou a fantasia de algum dia organizar uma antologia de textos mostrando como, ao longo dos séculos, a obsessão com o resgate do ensino sempre foi uma tônica absolutamente central no pensamento e discurso político brasileiros.
Não é mesmo notável que José Bonifácio, o Patriarca da Independência, já se erguesse aos brados contra a precariedade da nossa educação básica e clamasse às elites responsáveis da jovem pátria que sem resolver essa questão o país não tinha jeito? A impressão que se tem, comparando o dito e o feito de lá para cá, é que quanto mais tenebrosa a realidade, mais luminoso o discurso.
De Rui Barbosa a Manoel Bonfim na República Velha, passando por Mário Henrique Simonsen e Hélio Jaguaribe no pós-guerra, sem esquecer, é claro, Eugenio Gudin e Darcy Ribeiro, algumas das páginas mais empolgantes de nossos reformadores e especialistas de todas as épocas e filiações doutrinárias versam sobre o tema. As eleições estão aí: que candidato poderá deixar de dar máxima prioridade à educação? A obsessão educacional e o "tudo pelo social" são nossos velhos companheiros. Nada mais justo.
No fundo é como se, a cada nova geração, os líderes das mais diversas correntes ideológicas se unissem no ritual de mais uma vez arrolar as suas estatísticas favoritas do nosso horror educacional (sempre um banquete de mil talheres), prever o caos inevitável se nada for feito e apontar as soluções claras, evidentes e inovadoras do problema. Ensino básico de qualidade, estamos todos de acordo, é a resposta. Mas qual é a questão?



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