São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
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CINEMA - "LABIRINTO DE PAIXÕES"
Almodóvar usa preconceito contra o preconceito

Divulgação
Cena do filme "Labirinto de Paixões", dirigido pelo espanhol Pedro Almodóvar em 1982 e que estréia hoje


especial para a Folha

Um dos maiores méritos do espanhol Pedro Almodóvar é filmar o desejo guiado apenas pelo próprio desejo -ou seja, sem o menor escrúpulo ou preocupações de bom gosto.
Pode ser uma madre superiora se jogando aos pés de prostitutas e drogadas, um jato de esperma voando pela janela e caindo no rosto de uma moça na calçada ou os closes nos sexos que se destacam sob as calças apertadas de quem anda pela rua na cena de abertura deste genial "Labirinto de Paixões" (1982).
E o que é um "Labirinto de Paixões", segundo Almodóvar, senão o fim, pela exacerbação delirante dos estereótipos, de qualquer parâmetro que possa até hoje ter sustentado discursos tão díspares quanto o da psicanálise ou o dos preconceitos sexuais?
Um "bioginecologista" (seja lá o que isso queira dizer) que tem horror ao sexo consegue reproduzir periquitos idênticos pelo método da proveta.
Sua filha, Sexília, ninfomaníaca e líder de uma banda de mulheres, tenta resolver um trauma de infância com uma psicanalista lacaniana que só pensa em dormir com o pai da cliente.
Uma tintureira violada pelo próprio pai e fã de Sexília foge de casa e faz uma operação plástica que a deixa idêntica à filha do bioginecologista, para acabar na cama com este último, apaixonada pelo novo "pai", que por sua vez também recobra o gosto pelo sexo.
O filho incógnito e homossexual do imperador de Tirã (referência direta à dinastia Pahlevi, do Irã) transa com a ex-madrasta (a princesa Toraya) finalmente fértil graças ao método do bioginecologista.
Um estudante islâmico que costuma se vestir de mulher muçulmana (Antonio Banderas) usa seu olfato anormal para localizar e raptar, com seus colegas terroristas, o filho do imperador, por quem está apaixonado etc.

Caricatura
Os traumas psicológicos são reduzidos à sua própria caricatura. Todos os clichês psicanalíticos, entre pais e filhos, deixam de ser mero artifício simbólico para, postos em prática, e sem culpa, terminarem dissolvidos pelo escracho dessa representação radicalizada. Não há mais sofrimento a partir do momento em que todos levam os clichês ao cúmulo e vivem a felicidade dos extremos.
É o que faz com que esses filmes sejam ao mesmo tempo profundamente comoventes.
Eles são uma mistura original de escracho e melodrama, em que as pessoas choram de amor, por terem sido abandonadas, por não serem correspondidas, mas nunca da miséria de estarem vivas, simplesmente porque isso não lhes passa pela cabeça.
Estar vivo é um jogo desvairado e divertido, e no mundo de Almodóvar as pessoas são antes de tudo solidárias nos seus delírios.

Estilo
Em "Labirinto de Paixões", os desejos, por mais alucinados, acabam se encontrando, se atraindo, se adequando uns aos outros. A realidade fornece a combinação perfeita das taras.
Tudo parece ter solução quando se decide viver -assim como Almodóvar filma- o seu próprio estilo até as últimas consequências.
O humor de Almodóvar se serve dos preconceitos contra os preconceitos.
E, como ninguém escapa -todos, invariavelmente, estão sujeitos à loucura de suas próprias taras-, só resta rir.
O preconceito desaparece com o estereótipo transformado em fonte de riso; não um riso exterior, mas de quem ali se reconhece necessariamente, nem que seja só por ser humano.
(BERNARDO CARVALHO)

Filme: Labirinto de Paixões
Produção: Espanha, 1982
Direção: Pedro Almodóvar
Com: Antonio Banderas, Cecilia Roth, Imanol Arias, Helga Liné, Augutín Almodóvar
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 1



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