São Paulo, Sexta-feira, 02 de Abril de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"PELA VIDA DE UM AMIGO"
Culpa ganha cara no fim

especial para a Folha

"Pela Vida de um Amigo" é um sofrimento -e não só para os personagens. Mas, ao contrário do que disse boa parte da crítica americana à época do lançamento do filme nos Estados Unidos, em 98, é daí que vem o seu interesse.
O filme é uma rara e desconfortável representação da culpa em estado bruto. Tudo é sobre a culpa, todas as relações estão baseadas na culpa e são devastadas por ela; uma culpa tão forte que mesmo o amor, o romance que se esboça a certa altura, acaba padecendo no confronto, em sua debilidade.
A culpa está em toda parte, anulando e invertendo tudo, o instinto de sobrevivência, a inteligência, e reduzindo a amizade e o amor a manifestações desconfiadas, interessadas, o contrário da amizade e do amor.
É do desconforto dessa destruição onipresente que vem a inteligência do argumento, aliás baseado no filme francês "Force Majeure" (1989), de Pierre Jolivet.
Três rapazes americanos em férias se encontram na Malásia. São jovens inconsequentes (se preocupam no máximo, como todo jovem americano, com alguma espécie em extinção) e se divertem: fumam haxixe, transam com as locais, vão à praia. Estão ali pela aventura e pelo exótico.
Ao final da temporada, um deles decide ficar e defender os orangotangos, enquanto os dois outros voltam para Nova York.
Dois anos depois, um deles, que agora é motorista de limusine, é procurado por uma advogada que lhe informa que o amigo que ficou na Malásia passou os últimos dois anos preso por causa do haxixe que os companheiros deixaram antes de partirem e que será enforcado dentro de oito dias por tráfico.
A única maneira de salvar o rapaz da forca é levando os outros dois de volta à Malásia (daí o título um tanto sarcástico em inglês: "Return to Paradise") para assumirem parte da culpa. Nesse caso, cada um teria de passar três anos numa prisão aterrorizante e à mercê de um sistema judiciário que parece ter se inspirado no filme "O Expresso da Meia-Noite".
Todo o roteiro, com a advogada tentando convencer os dois a voltarem para salvar a vida do outro, se sustenta no dilema da culpa. E de uma forma tão ostensiva (sempre a afirmação desse mesmo sentimento que está, como deus, em toda parte), que o espectador é deixado num estado de permanente desconfiança, à espera de uma reviravolta, achando que a qualquer momento aparecerá algo para tornar o filme menos radical e desconfortável, e mais americano.
E a reviravolta vem, infelizmente, com o aparecimento de uma repórter caricaturalmente voraz, que põe tudo a perder.
A atmosfera doentia instalada pela culpa (esse mundo sem razão e que não deixa opções aos personagens além de se auto-imolarem) vai se esvaziando conforme o mal ganha por fim uma encarnação na imprensa e na Justiça podre de Terceiro Mundo.
São ambos (a imprensa e a barbárie do subdesenvolvimento), afinal, os culpados de tudo. E agora que a culpa já tem uma imagem, o espectador pode respirar aliviado, porque aquele desconforto difuso que podia fazer desse filme uma obra totalmente estranha e original acabou reduzido à velha banalidade do maniqueísmo hollywoodiano.
(BC)

Filme: Pela Vida de um Amigo
Produção: EUA, 1997
Direção: Joseph Ruben
Com: Vince Vaughn, Anne Heche e Joaquin Phoenix
Quando: a partir de hoje, nos cines Eldorado 3, Morumbi 6, Cinearte 2 e circuito



Texto Anterior: "Nossa Linda Família": "Sitcom" é "Festa de Família" à francesa
Próximo Texto: Cinema - "Uma Carta de Amor": Autor se inspira em sua família
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.