São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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ANÁLISE

Elegia de uma nacionalidade abortada

FRANCISCO FOOT HARDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

É verdade, como queria o historiador José Calasans, que Euclydes da Cunha, em "Os Sertões", encerrou a tragédia de Canudos numa "gaiola de ouro". Mas é verdade também que sem essa obra monumental, em todos os sentidos, da literatura e cultura brasileiras, a memória dessa barbárie "fundadora" teria, há muito, soçobrado.
Como caíram, na infindável correnteza do Lethe de nossa amnésia de todo dia, tantas tragédias anteriores e posteriores ao massacre de miseráveis no sertão do Vaza Barris. Faltou a essas violências o narrador talhado no acúmulo de cenas e no corte de cada drama em relevo.
E, sobretudo, na mistura de tempos, ritmos e espaços tão desiguais, forçados a essa exibição extrema de uma voz que é poesia e registro, palavra e imagem em transumância como a paisagem desolada e o homem que a ela se cola nas miragens da retina ressequida. "Os Sertões" são nosso maior mito literário. Euclydes não o inventou, mas foi um grande catalisador. Antes dele, teríamos que buscar o sertanejo em Alencar, Taunay ou mesmo Araripe Jr.. Mais um pouco longe, mas tão perto, o "Facundo" de Sarmiento e essa sublime "vertigem do vazio".
Depois, vieram os "sertanistas" de dicção regionalista (processo que Euclydes conscientemente evitou), como Coelho Netto, Afrânio Peixoto, Fábio Luz. Seguiram-se os modernistas nordestinos dos anos 20. A constelação amplia-se e refaz o estilo. A tal ponto que na obra-prima "Vidas Secas" já quase não se percebe os sinais do épico-dramático euclidiano. Mas, quando não, permanecem na mudez de um mundo confinado, a sina do migrante jogando para fora o mesmo rastro de soledade sem volta.
Linhagem renitente que se supera em sua maior conservação. Seja em morte e vida tornadas severinas por João Cabral, seja nas veredas-enigmas do grande sertão roseano, todos quiseram revolucionar a posição do narrador euclidiano.
Quando o lograram, foi na justa homenagem à arquitetura de uma linguagem pretérita.
E foram chegando as metamorfoses artísticas em novas formas que fizeram renascer "Os Sertões" no cinema de Glauber Rocha e, mais agora, no teatro de José Celso Martinez Corrêa. Este alcançou a proeza de levar ao palco blocos inteiros da narrativa original, que revela, então, o que Guilherme de Almeida, nos anos 40, e os irmãos Campos, nos 90, sublinharam: a prosa de Euclydes é, por inteiro, poética.
Elegia de uma nacionalidade abortada, "Os Sertões" teve recepção internacional crescente. Da versão apócrifa para o espanhol, surgida em Buenos Aires, à bela tradução de Samuel Putnam, saída nos EUA, em 1944, e à edição chinesa de 1952, festejada como "poema revolucionário" do Brasil, percepções se constroem.
Nos anos 90, novas traduções para francês, alemão e holandês amplificaram as possibilidades -que o húngaro Sándor Márai, nos 60, e o peruano Vargas Llosa, nos 80, mostraram ser infinitas ao renderem-lhe tributos notáveis: Canudos para sempre memória e motivo, como toda arte verdadeiramente forjada na história.

FRANCISCO FOOT HARDMAN é professor de teoria e história literária na Unicamp e autor de "A Vingança da Hiléia: Euclides da Cunha, a Amazônia e a Literatura Moderna" (Unesp).



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