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ANÁLISE
Elegia de uma nacionalidade abortada
FRANCISCO FOOT HARDMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA
É verdade, como queria o historiador José Calasans, que
Euclydes da Cunha, em "Os Sertões", encerrou a tragédia de Canudos numa "gaiola de ouro".
Mas é verdade também que sem
essa obra monumental, em todos os sentidos, da literatura e
cultura brasileiras, a memória
dessa barbárie "fundadora" teria, há muito, soçobrado.
Como caíram, na infindável
correnteza do Lethe de nossa
amnésia de todo dia, tantas tragédias anteriores e posteriores
ao massacre de miseráveis no
sertão do Vaza Barris. Faltou a
essas violências o narrador talhado no acúmulo de cenas e no
corte de cada drama em relevo.
E, sobretudo, na mistura de
tempos, ritmos e espaços tão desiguais, forçados a essa exibição
extrema de uma voz que é poesia e registro, palavra e imagem
em transumância como a paisagem desolada e o homem que a
ela se cola nas miragens da retina ressequida.
"Os Sertões" são nosso maior
mito literário. Euclydes não o
inventou, mas foi um grande catalisador. Antes dele, teríamos
que buscar o sertanejo em Alencar, Taunay ou mesmo Araripe
Jr.. Mais um pouco longe, mas
tão perto, o "Facundo" de Sarmiento e essa sublime "vertigem do vazio".
Depois, vieram os "sertanistas" de dicção regionalista (processo que Euclydes conscientemente evitou), como Coelho
Netto, Afrânio Peixoto, Fábio
Luz. Seguiram-se os modernistas nordestinos dos anos 20. A
constelação amplia-se e refaz o
estilo. A tal ponto que na obra-prima "Vidas Secas" já quase
não se percebe os sinais do épico-dramático euclidiano. Mas,
quando não, permanecem na
mudez de um mundo confinado, a sina do migrante jogando
para fora o mesmo rastro de soledade sem volta.
Linhagem renitente que se
supera em sua maior conservação. Seja em morte e vida tornadas severinas por João Cabral,
seja nas veredas-enigmas do
grande sertão roseano, todos
quiseram revolucionar a posição do narrador euclidiano.
Quando o lograram, foi na justa
homenagem à arquitetura de
uma linguagem pretérita.
E foram chegando as metamorfoses artísticas em novas
formas que fizeram renascer
"Os Sertões" no cinema de Glauber Rocha e, mais agora, no teatro de José Celso Martinez Corrêa. Este alcançou a proeza de
levar ao palco blocos inteiros da
narrativa original, que revela,
então, o que Guilherme de Almeida, nos anos 40, e os irmãos
Campos, nos 90, sublinharam: a
prosa de Euclydes é, por inteiro,
poética.
Elegia de uma nacionalidade
abortada, "Os Sertões" teve recepção internacional crescente.
Da versão apócrifa para o espanhol, surgida em Buenos Aires, à
bela tradução de Samuel Putnam, saída nos EUA, em 1944, e
à edição chinesa de 1952, festejada como "poema revolucionário" do Brasil, percepções se
constroem.
Nos anos 90, novas traduções
para francês, alemão e holandês
amplificaram as possibilidades
-que o húngaro Sándor Márai,
nos 60, e o peruano Vargas Llosa, nos 80, mostraram ser infinitas ao renderem-lhe tributos
notáveis: Canudos para sempre
memória e motivo, como toda
arte verdadeiramente forjada
na história.
FRANCISCO FOOT HARDMAN é professor de
teoria e história literária na Unicamp e autor de
"A Vingança da Hiléia: Euclides da Cunha, a
Amazônia e a Literatura Moderna" (Unesp).
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