São Paulo, domingo, 02 de maio de 2010

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FERREIRA GULLAR

Bela época da literatura brasileira


Consagrar-se como teatrólogo era aspiração dos autores românticos como José de Alencar


LEMBRO-ME de ter visto, quando menino, em minha casa, em São Luís, fascículos de folhetins que minha mãe recebia à porta, cada semana. Um desses folhetins deixou-me impressionado por seu título: "A Mão do Finado".
Essa lembrança me veio ao ler o livro de Ubiratan Machado, recém-publicado, e que nos conta da vida literária no Brasil durante o romantismo. Embarquei na leitura com crescente interesse, à medida que me eram revelados os diferentes aspectos da realidade literária do país naquele período. Se é verdade que, de longa data, conheço as obras de nossos escritores românticos, pouco sabia do mundo social e artístico em que viveram e escreveram. Mesmo as biografias que lera, fosse de Gonçalves Dias ou de Castro Alves, não encontrei nelas a visão panorâmica que o livro de agora me ofereceu.
Mas o que mais me tocou foi a revelação, para mim insuspeitada, da riqueza daquela vida literária e da sociedade brasileira -no Rio e em São Paulo, mas também em outras capitais- no propósito de engajar-se na produção e no consumo da obra literária, da fruição artística, que se ampliou e aprofundou.
Esse avanço se dá, naturalmente, como consequência do avanço da própria sociedade brasileira que, graças ao telégrafo elétrico e à intensificação da navegação marítima, sofre amplamente a influência europeia. A substituição dos lampiões que consumiam óleo de peixe pelas lâmpadas de gás estimulou o surgimento da diversão noturna e, sobretudo, a frequentação de teatros.
E é surpreendente o que passou a ocorrer nessas casas de espetáculo, que se tornaram, em substituição à igreja, o local de encontro das pessoas, mas, sobretudo, o lugar onde experimentavam, juntas, o que a vida cotidiana não lhes oferecia: a vivência artística própria do teatro.
Um teatro, sobretudo, romântico, sentimental, muitas vezes próximo ao dramalhão. Faltava-lhe a fineza do melhor teatro europeu, mesmo porque, em certas ocasiões, lembrava um piquenique: as pessoas levavam pão e peixe frito para comerem nos intervalos do espetáculo, que muitas vezes duravam horas.
No começo, as peças eram todas estrangeiras, quase sempre francesas, mas, na segunda fase romântica, a cena foi tomada por autores brasileiros, como José de Alencar e, sobretudo, Manuel de Macedo, cujas peças se tornaram êxito de público, como poucas vezes se viu.
O teatro tornou-se também o recinto propício para os poetas declamarem seus versos, nos intervalos dos atos ou no final do espetáculo. Aliás, naquela época, quase todo mundo se julgava poeta e não perdia oportunidade para recitar seus poemas, também, nas festas de aniversário, nos casamentos, nos jantares comemorativos, nas tavernas e até nas esquinas.
Apesar disso, ou talvez por isso, fazer poemas era considerado um mau sinal: sinal de que não se tratava de pessoa séria, capaz de desempenhar com responsabilidade funções públicas, empresariais e até mesmo matrimoniais. E esse desprestígio não atingia apenas os poetas; estendia-se aos escritores de modo geral e a tal ponto que Martins Pena, teatrólogo talentoso, temia que a divulgação de sua vocação literária lhe dificultasse a nomeação para o serviço público.
Os autores teatrais, pela popularidade que conquistaram, gozavam de maior consideração, de modo que consagrar-se como teatrólogo era aspiração de todos os escritores românticos, não apenas pelo prestígio como também pela grana que lhes vinha da bilheteria. De Gonçalves Dias a José de Alencar, de Castro Alves a Tobias Barreto, todos aspiravam à glória teatral. Isso sem falar no convívio com as atrizes, com quem mantinham romances que davam o que falar.
Um frequentador contumaz dos espetáculos teatrais era o próprio imperador dom Pedro 2º, que ali comparecia acompanhado da imperatriz. A sua presença servia de pretexto aos poetastros para louvá-lo em versos, ainda que maus versos, na esperança de contar com sua conhecida boa vontade para com os intelectuais.
Mas volto à "A Mão do Finado", que foi inicialmente publicado no "Jornal do Comércio", do Rio, como sendo da autoria de Alexandre Dumas e continuação de "O Conde de Monte Cristo". Na verdade, quem o escreveu foi o jornalista português Alfredo Possolo Hogan. Dumas chegou a escrever uma carta protestando contra tal empulhação, mas de nada adiantou. "A Mão do Finado" foi depois editado em livro, em Portugal, e, por incrível que pareça, traduzido para o francês e incluído nas obras completas do mestre francês.


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