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DRAUZIO VARELLA
Confissões de um viciado arrependido
Larguei de fumar há 20
anos. Hoje a fumaça me incomoda. Odeio comer no meio da
fumaça. Se o lugar está cheio de
fumantes, os olhos me ardem e,
quando volto para casa, ponho a
camisa para lavar e penduro a
calça no banheiro para não impregnar o armário.
Minha inimizade com a nicotina, droga covarde, acontece no
plano social e no pessoal.
Em 30 anos de cancerologia,
perdi a conta de quantos vi morrer só porque fumavam. No ano
passado, morreram 200 mil pessoas por causa do cigarro no Brasil. É uma epidemia. Matou mais
gente do que a Aids somada a todas as outras doenças infecciosas
e às mortes por acidentes e violência urbana!
No plano puramente pessoal, a
inimizade é até maior. Maltratei
meu corpo com cancerígenos de
ação lenta durante 19 anos. Mais
grave ainda, o cigarro matou
meu pai, um irmão alto e bonito
aos 45 anos e um sogro querido.
Apesar de toda a motivação
pessoal, se quiser ser honesto, devo confessar que ainda sonho com
o cigarro. Sonho que estou fumando e sinto uma decepção horrível: "Que idiota, voltei a fumar!". Então, acordo.
Quando larguei, era muito pior.
Chegava a sonhar com essa cena
duas vezes na mesma noite. Depois, foi espaçando; agora, a última vez que aconteceu foi antes do
Natal.
Foi no dia em que, ao atravessar a porta de saída do hospital,
fui invadido por uma sensação de
felicidade repentina. Na hora,
achei que era a luminosidade da
manhã e a brisa fresca, mas logo
percebi o engano: era o cheiro do
cigarro das pessoas que vinham
fumar do lado de fora. É muita
humilhação para um viciado arrependido! Depois de 20 anos, o
idiota ainda baba quando é pego
desarmado diante da droga. Na
mesma noite, voltou o sonho. Fazia seis meses que ele não vinha.
Parece que meu caso não é único. Muitos ex-fumantes relatam
sonho idêntico. A aparição é tão
constante que deve representar
um dos sintomas crônicos da abstinência.
A nicotina age no cérebro e altera o metabolismo dos neurônios.
É a droga mais difícil de largar.
Proíbo um adolescente com tuberculose de jogar fumaça nos
pulmões. Ele entende, abandona
a maconha, o crack, mas o cigarro
não: "Pô, é mais difícil do que o
crack, doutor".
Não ouvi isso duas ou três vezes.
De tanto ter ouvido e nunca escutado o contrário, acabei convencido do valor estatístico da observação. A nicotina provoca uma
doença crônica, recidivante.
Por isso ninguém tem o direito
de julgar moralmente um fumante. Defendermo-nos da fumaça
deles é uma coisa, dever de todos,
mas considerá-los pessoas pusilânimes só porque fumam é demonstração de ignorância da
ação farmacológica da nicotina.
Todo mundo que fuma -até os
que dizem "Fumo mesmo, e
daí?"-, qualquer um, sem exceção, largaria imediatamente se isso não lhe trouxesse sofrimento.
Que ser humano encontra prazer
na escravidão? Quem gosta de
andar com hálito de cinzeiro, com
a pele sem vitalidade, com o fôlego curto e de correr o risco de ficar
impotente ou de ter um ataque
cardíaco no almoço de domingo?
Não vamos nos iludir, o fumante só não larga o cigarro por uma
razão: não consegue. Não encontra forças para vencer a dependência. A síndrome de abstinência da droga desnorteia o coitado.
Quando ela vem, a vida veste seu
manto cinzento, e o corpo entra
numa agitação crescente, inexorável. Só quem já passou por isso
sabe o que é.
Então basta a primeira tragada, e a felicidade torna-se possível
outra vez. Mas por pouco tempo.
Menos de uma hora depois, a abstinência cruza os braços à soleira
da porta: "Vai fumar já ou quer
que espere?". O dia inteiro nesse
tormento, a vontade do usuário
curva-se à abstinência como o
marido diante da mulher enfezada: "Melhor fazer logo antes que
ela fique nervosa".
A nicotina é vil, persistente, derrota pelo cansaço. Em poucos
dias, faz o principiante virar cachorro manso. Daí em diante, é
um maço por dia. Todo santo dia,
60 milhões de mulheres e homens
no Brasil inteiro, pelo resto de
suas vidas, molham a mão do fornecedor.
Para comemorar o Dia Internacional de Combate ao Fumo, o
Ministério da Saúde vai obrigar
os fabricantes a estampar nos
maços figuras que lembrem ao fumante as consequências do fumo,
medida adotada com sucesso em
outros países. No combate ao fumo, a atual equipe do ministério
já fez muito mais do que todas as
anteriores somadas.
Apesar de necessária, no entanto, a consciência dos malefícios de
uma droga não é condição suficiente para acabar com a dependência dela.
Para tanto, você, fumante, precisa de determinação. Se não confia na força de vontade para parar de uma vez, pelo menos tente
diminuir a dose. É lógico que dá!
Não venha com aquela conversa
de que agora não é possível porque anda meio nervoso. Ninguém
perde o juízo se não fumar 20 ou
30 cigarros por dia. Dez não está
bom para começar? Dez fazem
menos mal e é mais do que suficiente para aplacar as crises mais
torturantes.
Diminuir o cigarro sempre é
possível. Mesmo que numa noite
desvairada você enfie o pé na jaca
e fume dois maços, a ressaca do
dia seguinte vai ajudá-lo a segurar outra vez.
Depois de ter feito isso, experimente parar um dia inteiro, só
para ver como é. Calma, é um dia
só, no outro você volta aos dez.
Ou, talvez, um pouco menos,
quem sabe. Custa experimentar?
Afinal, um mínimo de brio ainda
lhe resta. Vai morrer sem tentar?
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