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LIVROS
CINEMA
"Kafka Vai ao Cinema", de Hanns Zischler, traz a vida de cinéfilo de Kafka
Ator alemão tenta decifrar o quebra-cabeça kafkiano
MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL
"Kafka Vai ao Cinema", que
agora é lançado no Brasil, é uma
pequena jóia da cinefilia, além de
ser um quebra-cabeças kafkiano.
O livro reúne 20 anos de pesquisas do ator alemão Hanns Zischler sobre os hábitos de cinéfilo de
Franz Kafka (1883-1924).
A idéia do ator é engenhosa. Como Kafka, o visionário que expressou a alienação e a angústia
do século 20, se relaciona com a
arte que marcou o século? O trabalho é difícil. Não há uma relação direta entre a obra de Kafka e
o cinema. Na prosa de Kafka, "a
cinematografia não foi transformada num tema", afirma Zischler
no livro. Nem como técnica, nem
como imagem. Para o ator, o cinema "permaneceu estranhamente
excluído, como se Kafka, em nítido contraste com muitos escritores de sua geração, duvidasse da
possibilidade de ele ser convertido em literatura".
Trata-se então de seguir os passos de Kafka em Praga, Paris, Verona, Berlim etc., em suas "viagens de formação". Levantar sua
memória "eidética", descobrir tudo aquilo que pode ter visto e sentido. Garimpar arquivos de jornais para checar o que estava em
cartaz quando Kafka passava pelas cidades. E tirar desse caldo de
cultura a matéria-prima que gerou obras-primas como "O Castelo", "A Metamorfose" e "O Processo", publicadas postumamente, na década de 1920.
Para Zischler, a cabeça de Kafka
vira uma "câmera". Sua infeliz
noiva e correspondente Felice
Bauer vira a "grande tela" onde
projeta suas emoções. O mundo
passa a ser visto pela "perspectiva
Kafka" ou pela "visão cinética" do
autor, e assim por diante.
Há registros interessantes. Apesar de serem escritos esparsos,
Kafka registrou em cartas, em
diários e em bilhetes suas impressões sobre o "cinematógrafo". Cinema nessa época, bem entendido, não eram superproduções
hollywoodianas exibidas em salas
majestosas, aquelas que atingiram seu ápice na década de 1940.
O "cinematógrafo" ainda era
um misto de bordel, atração circense e curiosidade tecnológica.
Não é errado dizer que as andanças soturnas do jovem e solteiro
Kafka, sozinho ou com seu amigo
Max Brod, também giravam por
esses interesses.
A linguagem cinematográfica
ainda estava sendo criada. Cinema (mudo e em preto-e-branco)
era uma sucessão de dramalhões,
esboços de épicos e fragmentos
melodramáticos emprestados das
óperas. Atores ainda precisavam
defender a nova arte, como Zischler bem demonstra ao citar o
ator Albert Bassermann ("para o
ator cinematográfico, as condições de expressão não apresentam qualquer diferença em relação àquelas que prevalecem no
ator teatral").
Cartazes e cartões postais também eram essenciais para se criar
a imagem de um filme. E isso foi
fonte de informação preciosa para Zischler seguir os passos de
Kafka. Como a Europa ainda estava diante de duas guerras mundiais, a recuperação desses filmes
e sua publicidade foi um trabalho
arqueológico, restrito a arquivos,
cinematecas e a historiadores de
cinema.
Zischler freqüentemente dispunha apenas de fragmentos, poucos segundos de película, fotogramas que permitiriam apenas vislumbrar o que as imagens da pré-história do cinema representaram
na cabeça do jovem K. São títulos
como o dinamarquês "A Escrava
Branca" (1911), "Nick Winter e o
Roubo da Mona Lisa", "O Soldado Galante" (1908), "O Guarda
Sedento" (1908) etc.
Apesar de desconhecido do
grande público, Zischler é um
ator prolífico e já trabalhou com
diversos diretores importantes:
Liliana Cavani ("O Retorno do
Talentoso Ripley"), Costa-Gavras
("Amém") e Godard ("Alemanha
Ano 90 Nove(o) Zero"), entre outros. Com Wim Wenders teve alguns de seus papéis mais marcantes, especialmente em "No Decorrer do Tempo" (1976), um road-movie que faz um retrato melancólico da decadência do cinema.
Apesar de não gostar de ver seu
nome associado ao de Wenders,
Zischler segue os passos do diretor alemão, reconstruindo a idéia
de cinema. Zischler fez uma bela
investigação abnegada e emocional que lembra, por exemplo, o
trabalho feito por Saulo Pereira de
Mello ao restaurar e publicar todos os fotogramas de "Limite", do
brasileiro Mário Peixoto.
Kafka Vai ao Cinema
Autor: Hanns Zischler
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 34 (168 págs.)
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