São Paulo, sábado, 02 de julho de 2005

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LIVROS

CINEMA

"Kafka Vai ao Cinema", de Hanns Zischler, traz a vida de cinéfilo de Kafka

Ator alemão tenta decifrar o quebra-cabeça kafkiano

MARCOS STRECKER
DA REPORTAGEM LOCAL

"Kafka Vai ao Cinema", que agora é lançado no Brasil, é uma pequena jóia da cinefilia, além de ser um quebra-cabeças kafkiano. O livro reúne 20 anos de pesquisas do ator alemão Hanns Zischler sobre os hábitos de cinéfilo de Franz Kafka (1883-1924).
A idéia do ator é engenhosa. Como Kafka, o visionário que expressou a alienação e a angústia do século 20, se relaciona com a arte que marcou o século? O trabalho é difícil. Não há uma relação direta entre a obra de Kafka e o cinema. Na prosa de Kafka, "a cinematografia não foi transformada num tema", afirma Zischler no livro. Nem como técnica, nem como imagem. Para o ator, o cinema "permaneceu estranhamente excluído, como se Kafka, em nítido contraste com muitos escritores de sua geração, duvidasse da possibilidade de ele ser convertido em literatura".
Trata-se então de seguir os passos de Kafka em Praga, Paris, Verona, Berlim etc., em suas "viagens de formação". Levantar sua memória "eidética", descobrir tudo aquilo que pode ter visto e sentido. Garimpar arquivos de jornais para checar o que estava em cartaz quando Kafka passava pelas cidades. E tirar desse caldo de cultura a matéria-prima que gerou obras-primas como "O Castelo", "A Metamorfose" e "O Processo", publicadas postumamente, na década de 1920.
Para Zischler, a cabeça de Kafka vira uma "câmera". Sua infeliz noiva e correspondente Felice Bauer vira a "grande tela" onde projeta suas emoções. O mundo passa a ser visto pela "perspectiva Kafka" ou pela "visão cinética" do autor, e assim por diante.
Há registros interessantes. Apesar de serem escritos esparsos, Kafka registrou em cartas, em diários e em bilhetes suas impressões sobre o "cinematógrafo". Cinema nessa época, bem entendido, não eram superproduções hollywoodianas exibidas em salas majestosas, aquelas que atingiram seu ápice na década de 1940.
O "cinematógrafo" ainda era um misto de bordel, atração circense e curiosidade tecnológica. Não é errado dizer que as andanças soturnas do jovem e solteiro Kafka, sozinho ou com seu amigo Max Brod, também giravam por esses interesses.
A linguagem cinematográfica ainda estava sendo criada. Cinema (mudo e em preto-e-branco) era uma sucessão de dramalhões, esboços de épicos e fragmentos melodramáticos emprestados das óperas. Atores ainda precisavam defender a nova arte, como Zischler bem demonstra ao citar o ator Albert Bassermann ("para o ator cinematográfico, as condições de expressão não apresentam qualquer diferença em relação àquelas que prevalecem no ator teatral").
Cartazes e cartões postais também eram essenciais para se criar a imagem de um filme. E isso foi fonte de informação preciosa para Zischler seguir os passos de Kafka. Como a Europa ainda estava diante de duas guerras mundiais, a recuperação desses filmes e sua publicidade foi um trabalho arqueológico, restrito a arquivos, cinematecas e a historiadores de cinema.
Zischler freqüentemente dispunha apenas de fragmentos, poucos segundos de película, fotogramas que permitiriam apenas vislumbrar o que as imagens da pré-história do cinema representaram na cabeça do jovem K. São títulos como o dinamarquês "A Escrava Branca" (1911), "Nick Winter e o Roubo da Mona Lisa", "O Soldado Galante" (1908), "O Guarda Sedento" (1908) etc.
Apesar de desconhecido do grande público, Zischler é um ator prolífico e já trabalhou com diversos diretores importantes: Liliana Cavani ("O Retorno do Talentoso Ripley"), Costa-Gavras ("Amém") e Godard ("Alemanha Ano 90 Nove(o) Zero"), entre outros. Com Wim Wenders teve alguns de seus papéis mais marcantes, especialmente em "No Decorrer do Tempo" (1976), um road-movie que faz um retrato melancólico da decadência do cinema.
Apesar de não gostar de ver seu nome associado ao de Wenders, Zischler segue os passos do diretor alemão, reconstruindo a idéia de cinema. Zischler fez uma bela investigação abnegada e emocional que lembra, por exemplo, o trabalho feito por Saulo Pereira de Mello ao restaurar e publicar todos os fotogramas de "Limite", do brasileiro Mário Peixoto.


Kafka Vai ao Cinema
   
Autor: Hanns Zischler
Tradução: Vera Ribeiro
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 34 (168 págs.)


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