São Paulo, Sexta-feira, 02 de Julho de 1999
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CARLOS HEITOR CONY
O adultério de Capitu e o perdão de Cristo

"O Pires adultera o leite." A reclamação corria em toda a rua Cabuçu, no Lins e Vasconcelos. Pires era um português, dono da mercearia Mundos Irmãos, que vendia coisas, inclusive leite. Diziam que misturava leite com urina -se botasse água podia ser preso. Botando urina, o produto passava incólume pela fiscalização. Um outro português, não-sei-o-quê Pereira, botava água e fora preso pela Sunab da época. Urina combinava com o leite, não aparecia nos exames feitos em laboratório.
Se o Pires adulterava o leite, era um adúltero. Quando entrei no seminário e fiquei sabendo que Cristo perdoara uma adúltera, imaginei que misturar leite com urina era coisa antiga, bíblica. E, como outros tantos pecados, merecia perdão.
Quando me convidaram para participar do júri de Capitu, promovido pela Folha, pensei no Pires, no seu leite e na sua urina. Afinal, discutia-se se Capitu era ou não adúltera. Dificilmente me compreenderiam se falasse no Pires. Como testemunha de acusação, teria de ser objetivo -embora o assunto nada tivesse de objetivo.
Como julgamento literário, evidente que Capitu foi uma adúltera. Não fora, e seria uma abstração romântica, mais para José de Alencar do que para Machado de Assis. Aliás, fiz questão de citar Dalton Trevisan: ""Se Capitu não traiu Bentinho, então Machado de Assis é José de Alencar".
Mas o julgamento era jurídico, lá estava uma promotora na defesa e um criminalista na acusação. Acima de todos nós, Sepúlveda Pertence, ministro do Supremo.
Nunca houve testemunha mais desclassificada. Não presenciei os acontecimentos narrados, não tinha qualquer prova, os indícios -que eram muitos- foram produzidos pelo próprio marido, logo eram suspeitos. Mas há o cheiro -e o cheiro do adultério tresanda por todos os autos.
Muito importante o cheiro das coisas. Dou exemplos. Estava em Nice com Adolpho Bloch, e ele quis ir ao cassino, adorava jogar. Atravessávamos a rua quando passou um ônibus, e Adolpho me empurrou para dentro: ""Vamos nesse!". Perguntei se aquele ônibus passava pelo cassino. Ele respondeu que passava. Como tinha certeza? ""Pelo cheiro!"
O outro exemplo é do governador da Paraíba, José Maranhão, que é piloto traquejado. Não estava no comando do aparelho, tirava um cochilo, quando o co-piloto o acordou avisando que o painel indicava anomalia. O governador nem olhou o painel. Sentiu o cheiro de óleo e disse: ""Pistão do trem de pouso está vazando". Não deu outra.
Basta um nariz atento para a certeza de tudo, principalmente das injúrias do tempo e da vida. Daí a expressão ""Isso não me cheira bem". Pois no ""Dom Casmurro" o cheiro do adultério paira em cada página, em cada período. Os olhos de ressaca de Capitu e a ressaca do Flamengo que tragaria o amante. Está tudo ali.
Não sei se feliz ou infelizmente, os tribunais não aceitam o cheiro como prova. Em casos de adultério, exigem provas, lençóis emporcalhados, fotografias, testemunhos de camareiras e donos de motéis. No tempo de Bentinho não havia exame de DNA -e mesmo se houvesse, ele jamais iria pesquisar a certeza. O filho não era dele -cheirava a filho de outro.
Apesar de derrotado no júri, fiquei orgulhoso de meu culto machadiano. Cem anos após ter escrito o romance mais famoso de nossa literatura, um auditório lotado se empolgava com os disfarces, as insinuações, as pistas falsas que ele criara para contar a história de um paspalhão que, além de corno, era casmurro -o ""Dom" fora acrescentado porque um vizinho lhe atribuía fumos fidalgos.
Flaubert e Tolstói tiveram suas adúlteras. Ema Bovary e Ana Karenina pecaram explicitamente, foram punidas. Ema envenenou-se com os remédios da botica, Ana atirou-se nas rodas de um trem. Machado não seria melodramático a esse ponto. Além do mais, ele gostava de refocilar na ambiguidade. Não tinha certezas -e, ainda que Capitu fornicasse com o amante diante do marido, ele introduziria a dúvida na cabeça de Bentinho: será verdade o que estou vendo?
Em ""Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa quase ia criando uma ambiguidade igual. Diadorim atravessa o romance como a ""neblina" de Riobaldo. Somente ao final é revelado o segredo: Diadorim era a moça que se passava por jagunço. Machado jamais faria isso.
Comecei este artigo falando num português e agora, no final, falo em outro. Piada de Raul Solnado que fez sucesso: um tal de Joaquim não podia ver saia e casou-se com um escocês, desses que usam saiotes quadriculados. E só descobriu que havia se casado com um escocês por causa da gaita de fole.
Capitu traiu o marido. Nem por isso merece ser condenada. Entre os moradores da rua Cabuçu que condenavam o Pires por adulterar o leite, e o Cristo que perdoou a adúltera, fico mesmo com o Cristo.


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