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CARLOS HEITOR CONY
O adultério de Capitu e o perdão de Cristo
"O Pires adultera o leite." A
reclamação corria em toda a
rua Cabuçu, no Lins e Vasconcelos. Pires era um português,
dono da mercearia Mundos Irmãos, que vendia coisas, inclusive leite. Diziam que misturava leite com urina -se botasse
água podia ser preso. Botando
urina, o produto passava incólume pela fiscalização. Um outro português, não-sei-o-quê
Pereira, botava água e fora
preso pela Sunab da época.
Urina combinava com o leite,
não aparecia nos exames feitos
em laboratório.
Se o Pires adulterava o leite,
era um adúltero. Quando entrei no seminário e fiquei sabendo que Cristo perdoara
uma adúltera, imaginei que
misturar leite com urina era
coisa antiga, bíblica. E, como
outros tantos pecados, merecia
perdão.
Quando me convidaram para
participar do júri de Capitu,
promovido pela Folha, pensei
no Pires, no seu leite e na sua
urina. Afinal, discutia-se se
Capitu era ou não adúltera. Dificilmente me compreenderiam
se falasse no Pires. Como testemunha de acusação, teria de
ser objetivo -embora o assunto nada tivesse de objetivo.
Como julgamento literário,
evidente que Capitu foi uma
adúltera. Não fora, e seria uma
abstração romântica, mais para José de Alencar do que para
Machado de Assis. Aliás, fiz
questão de citar Dalton Trevisan: ""Se Capitu não traiu Bentinho, então Machado de Assis
é José de Alencar".
Mas o julgamento era jurídico, lá estava uma promotora
na defesa e um criminalista na
acusação. Acima de todos nós,
Sepúlveda Pertence, ministro
do Supremo.
Nunca houve testemunha
mais desclassificada. Não presenciei os acontecimentos narrados, não tinha qualquer prova, os indícios -que eram
muitos- foram produzidos
pelo próprio marido, logo eram
suspeitos. Mas há o cheiro -e o
cheiro do adultério tresanda
por todos os autos.
Muito importante o cheiro
das coisas. Dou exemplos. Estava em Nice com Adolpho Bloch,
e ele quis ir ao cassino, adorava
jogar. Atravessávamos a rua
quando passou um ônibus, e
Adolpho me empurrou para
dentro: ""Vamos nesse!". Perguntei se aquele ônibus passava pelo cassino. Ele respondeu
que passava. Como tinha certeza? ""Pelo cheiro!"
O outro exemplo é do governador da Paraíba, José Maranhão, que é piloto traquejado.
Não estava no comando do
aparelho, tirava um cochilo,
quando o co-piloto o acordou
avisando que o painel indicava
anomalia. O governador nem
olhou o painel. Sentiu o cheiro
de óleo e disse: ""Pistão do trem
de pouso está vazando". Não
deu outra.
Basta um nariz atento para a
certeza de tudo, principalmente das injúrias do tempo e da
vida. Daí a expressão ""Isso não
me cheira bem". Pois no ""Dom
Casmurro" o cheiro do adultério paira em cada página, em
cada período. Os olhos de ressaca de Capitu e a ressaca do
Flamengo que tragaria o
amante. Está tudo ali.
Não sei se feliz ou infelizmente, os tribunais não aceitam o
cheiro como prova. Em casos de
adultério, exigem provas, lençóis emporcalhados, fotografias, testemunhos de camareiras e donos de motéis. No tempo de Bentinho não havia exame de DNA -e mesmo se houvesse, ele jamais iria pesquisar
a certeza. O filho não era dele
-cheirava a filho de outro.
Apesar de derrotado no júri,
fiquei orgulhoso de meu culto
machadiano. Cem anos após
ter escrito o romance mais famoso de nossa literatura, um
auditório lotado se empolgava
com os disfarces, as insinuações, as pistas falsas que ele
criara para contar a história de
um paspalhão que, além de
corno, era casmurro -o
""Dom" fora acrescentado porque um vizinho lhe atribuía fumos fidalgos.
Flaubert e Tolstói tiveram
suas adúlteras. Ema Bovary e
Ana Karenina pecaram explicitamente, foram punidas.
Ema envenenou-se com os remédios da botica, Ana atirou-se nas rodas de um trem. Machado não seria melodramático a esse ponto. Além do mais,
ele gostava de refocilar na ambiguidade. Não tinha certezas
-e, ainda que Capitu fornicasse com o amante diante do
marido, ele introduziria a dúvida na cabeça de Bentinho: será verdade o que estou vendo?
Em ""Grande Sertão: Veredas", Guimarães Rosa quase ia
criando uma ambiguidade
igual. Diadorim atravessa o romance como a ""neblina" de
Riobaldo. Somente ao final é
revelado o segredo: Diadorim
era a moça que se passava por
jagunço. Machado jamais faria
isso.
Comecei este artigo falando
num português e agora, no final, falo em outro. Piada de
Raul Solnado que fez sucesso:
um tal de Joaquim não podia
ver saia e casou-se com um escocês, desses que usam saiotes
quadriculados. E só descobriu
que havia se casado com um escocês por causa da gaita de fole.
Capitu traiu o marido. Nem
por isso merece ser condenada.
Entre os moradores da rua Cabuçu que condenavam o Pires
por adulterar o leite, e o Cristo
que perdoou a adúltera, fico
mesmo com o Cristo.
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