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DANÇA/CRÍTICA
Saburo Teshigawara explora limites frágeis do tempo
INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA
Como revelar no acontecimento
visível e factual todo campo pensável do possível? Em "Kazahana", do coreógrafo japonês Saburo Teshigawara -apresentado
no último fim de semana pela Cia.
Karas, no Teatro Alfa-, o tempo
pode levar uma imagem a dissolver-se em outra, induzindo a ambigüidades da percepção. Espaços
visuais, espaços sonoros, espaços
abertos no tempo captam algo no
ar, algo que se vê também no gesto do corpo em movimento.
"Kazahana" tem a forma de
uma seqüência de quadros. Logo
de início, somos tomados pelo barulho de uma forte chuva, para,
em seguida, ver uma pessoa, vestida de preto no centro da cena,
receber no corpo a chuva invisível
no escuro. Em seguida o palco se
transforma em um cubo azul:
uma cortina de fios verticais, formando um cubo dentro da caixa
preta do palco. Essas linhas são
atravessadas em cima por alguns
fios horizontais, que criam uma
perspectiva infinita. A dança se dá
dentro, atrás e colada à estrutura
dos fios.
Os corpos ganham novas configurações pelos efeitos ópticos dos
fios e da luz. (Luz, cenário e figurino são também criados por Teshigawara.) A luz pode criar uma parede vermelha, ou branca; ou
áreas de sombra no piso, delimitando espaços; ou ainda uma atmosfera de cor, sublinhando a
sombra nos corpos.
Um trio de homens de calça vermelha e torso nu passa da lentidão ao movimento mais rápido,
sempre com uma energia compactada. Noutro trio, formado
por moças vestidas de branco, cada uma tem seu tempo: suspensão de gestos, fluidez e rapidez,
meia medida.
Imagens renascendo dentro de
imagens ganham novos sentidos.
Um movimento interno percorre
a obra de ponta a ponta: a consciência da fugacidade, precisando
de um gesto que a atualize.
A peça traz à tona outros tantos
espaços sonoros. Há mesmo um
momento em que um quarteto de
homens se senta no chão para ouvir a música eletroacústica, que
ressoa ciclicamente pelas caixas
de som. O sentido elíptico de tudo
ganha espirais musicais nessa
composição original de Neil
Spencer Griffiths. Apenas em dois
momentos se quebra o universo
eletroacústico: num duo de moças com violoncelos e no final,
com uma "Ave Maria" estilizada.
A segunda parte de "Kazahana"
repete gestos vistos ao longo da
primeira, em nova versão de figurinos negros. É preciso repetir para fazer durar. Repetição aqui é sinônimo de renovação, uma fricção constante na resistência das
coisas, ramificando-se em diversas séries. Linhas tateantes, mas
definidas, reflexivas e conscientes
de sua duração. Lento ou veloz, leve ou pesado, fluido ou colocado,
cada gesto toma seu tempo próprio, num frágil equilíbrio de
energia e força.
É pelo contraponto desses tempos que Teshigawara transforma
o tempo. E o tempo, para ele, é feito de limites frágeis entre o que se
forma e o que se transforma, entre
matéria e memória, semelhança e
alteridade, singular e múltiplo.
Vale dizer que, nessa estranha
dança tão rica de efeitos e tão segura nas suas delicadezas, vai-se
compondo aos poucos a imagem
do que é mais passageiro e difícil
de se fixar na vida: a imaterial e
memorável imagem de cada um
de nós.
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