São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2005

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DANÇA/CRÍTICA

Saburo Teshigawara explora limites frágeis do tempo

INÊS BOGÉA
CRÍTICA DA FOLHA

Como revelar no acontecimento visível e factual todo campo pensável do possível? Em "Kazahana", do coreógrafo japonês Saburo Teshigawara -apresentado no último fim de semana pela Cia. Karas, no Teatro Alfa-, o tempo pode levar uma imagem a dissolver-se em outra, induzindo a ambigüidades da percepção. Espaços visuais, espaços sonoros, espaços abertos no tempo captam algo no ar, algo que se vê também no gesto do corpo em movimento.
"Kazahana" tem a forma de uma seqüência de quadros. Logo de início, somos tomados pelo barulho de uma forte chuva, para, em seguida, ver uma pessoa, vestida de preto no centro da cena, receber no corpo a chuva invisível no escuro. Em seguida o palco se transforma em um cubo azul: uma cortina de fios verticais, formando um cubo dentro da caixa preta do palco. Essas linhas são atravessadas em cima por alguns fios horizontais, que criam uma perspectiva infinita. A dança se dá dentro, atrás e colada à estrutura dos fios.
Os corpos ganham novas configurações pelos efeitos ópticos dos fios e da luz. (Luz, cenário e figurino são também criados por Teshigawara.) A luz pode criar uma parede vermelha, ou branca; ou áreas de sombra no piso, delimitando espaços; ou ainda uma atmosfera de cor, sublinhando a sombra nos corpos.
Um trio de homens de calça vermelha e torso nu passa da lentidão ao movimento mais rápido, sempre com uma energia compactada. Noutro trio, formado por moças vestidas de branco, cada uma tem seu tempo: suspensão de gestos, fluidez e rapidez, meia medida.
Imagens renascendo dentro de imagens ganham novos sentidos. Um movimento interno percorre a obra de ponta a ponta: a consciência da fugacidade, precisando de um gesto que a atualize.
A peça traz à tona outros tantos espaços sonoros. Há mesmo um momento em que um quarteto de homens se senta no chão para ouvir a música eletroacústica, que ressoa ciclicamente pelas caixas de som. O sentido elíptico de tudo ganha espirais musicais nessa composição original de Neil Spencer Griffiths. Apenas em dois momentos se quebra o universo eletroacústico: num duo de moças com violoncelos e no final, com uma "Ave Maria" estilizada.
A segunda parte de "Kazahana" repete gestos vistos ao longo da primeira, em nova versão de figurinos negros. É preciso repetir para fazer durar. Repetição aqui é sinônimo de renovação, uma fricção constante na resistência das coisas, ramificando-se em diversas séries. Linhas tateantes, mas definidas, reflexivas e conscientes de sua duração. Lento ou veloz, leve ou pesado, fluido ou colocado, cada gesto toma seu tempo próprio, num frágil equilíbrio de energia e força.
É pelo contraponto desses tempos que Teshigawara transforma o tempo. E o tempo, para ele, é feito de limites frágeis entre o que se forma e o que se transforma, entre matéria e memória, semelhança e alteridade, singular e múltiplo. Vale dizer que, nessa estranha dança tão rica de efeitos e tão segura nas suas delicadezas, vai-se compondo aos poucos a imagem do que é mais passageiro e difícil de se fixar na vida: a imaterial e memorável imagem de cada um de nós.


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