São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2008

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Crítica/"Pontos de Vista de um Palhaço"

Heinrich Böll denuncia hipocrisia no milagre econômico alemão

MARCELO BACKES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Um vitorioso é sempre trivial e só a derrota é grandiosa, já disseram. "Pontos de Vista de um Palhaço", do Prêmio Nobel Heinrich Böll (1917-1985), é salvo também por isso. Em seus romances anteriores, Böll narrara os horrores da Segunda Guerra, evidenciando o "sentimento de culpa" vivido por vários escritores alemães. "Pontos de Vista de um Palhaço" (1963) analisa os anos do "milagre econômico". A ação do romance dura poucas horas. O palhaço Hans Schnier volta a Bonn e dá uma série de telefonemas a parentes e amigos, lembrando momentos fundamentais de sua vida. A passagem entre os flashbacks e o presente é fluida, como se Böll quisesse denunciar estruturalmente os tenentes eclesiais e universitários do nazismo que viraram generais na democracia pós-bélica.

Marginal romântico
O palhaço de Böll é um marginal romântico, um tolo que coleciona instantes, sente cheiros pelo telefone e prefere o fracasso honrado ao sucesso canalha. Sua questão central é a autonomia do indivíduo diante da ordem trituradora da organização. Sua família é protestante, o pai, um industrial do carvão, a mãe, uma nazista que para salvar a Alemanha dos "ianques judeus" manda a própria filha à morte quando a guerra já estava terminando, e depois funda um comitê conciliador de desarmonias raciais. Schnier vive uma união ilegítima de seis anos com Marie, filha católica de um comunista. Ela acaba largando-o, influenciada pelos amigos, quando se discute a educação dos futuros filhos no catolicismo, e se casa com Züpfner, católico e amigo de infância do protagonista. Abandonado, o Quixote sem Dulcinéia passa a viver a tragédia de sua monogamia convicta, ajoelhando no altar do álcool e sucumbindo aos 27 anos. A capacidade interventora do catolicismo hoje soa estranha, ingênua, e termina na constatação de que vivemos na "era da prostituição". É o resultado da fúria católica de Böll contra a sujeição de sua religião ao nazismo. Em vários momentos fica claro que o autor conta uma história apenas para descer o cacete de sua crítica. A hipocrisia vige muito além das confissões e sobra para todo mundo, capitalistas e proletários, direitistas e esquerdistas.

Amargor virtuoso
O livro causou forrobodó em terras alemãs, mas o amargor virtuoso de certa forma embota o vigor de seus golpes. Poder e ordem perdem sua verdadeira dimensão, já que todos os seus defensores são desclassificados como idiotas, num discurso monológico, fechado e de moral simplista. Anos depois da publicação, Böll reconheceria que tanto cristãos quanto capitalistas querem levar pauladas, e que não deixou de servi-los ao golpear a torto e a direito. Entre belas comparações ("os olhos baixos como os de uma freira que serve um bispo de má reputação") e a observação poética do detalhe ("um desses hotéis caros, onde a xícara de café não vem bem cheia"), Böll alcança expressões sintéticas e vigorosas ("excelsos dentes", "silêncio sangrento" e "alegria barroca"). A leitura é fluida e prazerosa. No fim, o palhaço que já fora um mímico famoso vai com seu violão às escadarias da estação central de Bonn pra agredir Marie, prestes a voltar da lua-de-mel em Roma. Ele coloca um cigarro no chapéu para mostrar que aceita esmolas em espécie e se assusta quando a primeira moeda tilinta. Sente seu destino de mendigo, mas se limita a ajeitar o cigarro que a moeda deslocara para bem perto da borda do chapéu.

MARCELO BACKES, escritor e tradutor, é doutor em germanística pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e autor de "Estilhaços" e "Maisquememória" (ambos pela ed. Record)

PONTOS DE VISTA DE UM PALHAÇO
Autor: Heinrich Böll
Tradução: Paulo Soethe
Editora: Estação Liberdade
Quanto: R$ 43 (312 págs.)
Avaliação: bom



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