São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2008

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Crítica/"A Arte de Produzir Efeito sem Causa"

Literatura de Mutarelli fica à altura de história trash

Autor descreve protagonista paranóico em livro que lembra gibi sem desenhos

ALCIR PÉCORA
ESPECIAL PARA A FOLHA

N ão vejo melhor modo de resenhar "A Arte de Produzir Efeito sem Causa", de Lourenço Mutarelli, do que contar por alto o seu enredo. Numa primeira parte da narrativa, o pacato protagonista, que porta o nome de Júnior, abandona a casa, a mulher, o filho e o emprego na fábrica de embalagens de autopeças. Muda-se então para o apê do pai, velho de bom coração, que tem um caso com a vizinha e aluga o segundo quarto do imóvel para uma estudante de artes. Júnior se instala no sofá da sala e lá dorme, deprimido, boa parte do dia. Na outra parte, gostaria de olhar a estudante nua por um buraquinho que lá havia. Se isso pareceu bobo, esperem para saber o motivo da brusca mudança e depressão de Júnior: o pobre descobrira que sua mulher havia dormido com o amiguinho do filho. E também com o pai do amiguinho do filho, o qual, flagrando o ilícito, exigiu a parte que lhe era devida para não divulgá-lo. E há mais: sabem quem era o pai do amiguinho do filho? Ninguém menos que um amigo fiel de infância, que também calhava de ser seu patrão na fábrica. Neste ponto, se alguém deixasse de lado o livro, não seria eu a condená-lo por impaciência. Mas há ainda uma segunda parte, na qual Júnior dá sinais de uma progressiva paranóia. Ela se precipita com a chegada, via sedex, de pacotes sem nome de remetente. Entre outros objetos, trazem um recorte de jornal de época que noticiava o caso em que William Burroughs, cultuado autor da beat generation, havia matado a própria mulher com um tiro de pistola ao errar o copo sobre a sua cabeça. Nada muito criminoso: apenas brincava, bêbado, de Guilherme Tell. Em outro pacote, ganha o DVD do filme de David Cronenberg inspirado em "Naked Lunch", do mesmo Burroughs, além de recortes nos quais defende a sua velha tese de que a linguagem é um vírus. Quanto a nós, atenção! Não devemos perder os signos de cultura underground disseminados na narrativa. Somados os pacotes à tentação da estudante (com quem divide um lanche, uma pizza e um baseado), mais os porres solitários de conhaque, Júnior dá de perceber estranhas conexões nos recortes. Passa daí a desenhar combinações com as suas letras, enquanto vai ficando afásico. Desconfiado dessas esquisitices, o pai resolve dar uma espiada nos papéis que o filho rabisca e descobre que ele preenche páginas com uma única frase. Embora nada se diga no livro, não é de duvidar que também tenham vindo vários outros DVDs, entre eles, "O Iluminado", de Stanley Kubrick. O certo é que, preocupado, o bom pai o leva a um médico, que suspeita de neurocisticercose, isto é, tênia nos miolos. Para ajudá-lo a deixar a bebida e as alucinações, o pai resolve lhe dar um choque de realidade e o leva a visitar o irmão, preso por tráfico de drogas. Mas tráfico não é problema para o irmão, e sim a suspeita de que a mãe, metida com demônios, entregara a eles a sua cabeça. E não é que Júnior acha que a mãe, já morta, fez o mesmo com ele? Aliás, Júnior suspeita que o demônio possuiu o pai e a estudante, trocando-os por fantasmas que querem matá-lo. Conseguirá ele matá-los antes disso? O que dizer mais? Fechos alternativos: 1) Que a literatura de Mutarelli faz jus à história "trash" que conta? 2) Que o livro é um gibi sem desenho? 3) Que o título é correto? Sem dar causa a nada, ainda ganhou uma resenha como efeito.

ALCIR PÉCORA é professor de teoria literária na Unicamp

A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA
Autor: Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39,50 (208 págs.)
Avaliação: ruim

NA INTERNET www.folha.com.br/082132
leia trecho do livro



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