São Paulo, terça, 2 de setembro de 1997.



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MÚSICA
Elza

Antonio Duarte/ Folha Imagem
A cantora carioca Elza Soares, que está lançando "Trajetória" -seu primeiro álbum em oito anos-, no Rio, semana passada


PEDRO ALEXANDRE SANCHES
enviado especial ao Rio de Janeiro

Nove anos sem gravar e morando mais no exterior que no Brasil, Elza Soares está de volta. "Trajetória", sua estréia em CD, devolve a cantora aos braços do Brasil e aos braços do samba.
Personagem de "Cantando para Não Enlouquecer", biografia escrita por José Louzeiro que será lançada no final do mês, Elza rememora, em disco e livro, trajetória marcada por tragédias pessoais e oscilação profissional.
Antes de se tornar cantora, passou fome, viveu em favela, casou aos 12 anos, teve cinco filhos, trabalhou em fábrica de sabão e hospício. Em 1962, no auge do sucesso, iniciou relação conturbada de 17 anos com o jogador de futebol Garrincha (1933-1983).
De carreira errática desde então, volta em disco que conta com sambas tradicionais, clássicos da MPB, baladas tristes e participação especial de Zeca Pagodinho.
"Eu sou uma cantora 'djou': de outro mundo, entendeu?", é como se define. Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.

Folha - Esse é seu primeiro álbum lançado originalmente em CD. Por que a ausência tão longa?
Elza Soares -
Meu filho (Garrinchinha, morto em 86, aos 9 anos) morreu, me descontrolei totalmente. Larguei tudo e fui embora para a América, completamente sozinha. Eu estava muito chata.
Fui para Paris, Roma. Até que disse: "Gente, vou voltar para o Brasil". Não acredito que exista alguém mais patriota que eu. Chego a ser nojenta. Olhava Paris, dizia: "Não parece o Brasil". Ia para Londres, Londres é cinzenta. Nova York: "Não gosto, não".
Folha - Posso perguntar sua idade?
Elza -
Olha, pode perguntar que eu vou responder. Tive várias encarnações, então não sei. Já tive encarnação de 7 anos, de 20, tem dia que eu tenho 100, tem dia que tenho 50. (Segundo o biógrafo José Louzeiro, Elza nasceu em 1930.)
Folha - Como você descobriu que ia ser cantora?
Elza -
Com a lata d'água na cabeça. Pegava a lata e dava um gemido (emite som grave característico). Já era "djou". Quando disse que ia ser cantora, foi um escândalo na família. "Tudo menos cantora!" Era como prostituição.
Casei e tive filho aos 12 anos, fiquei viúva aos 18, ele ficou tuberculoso. Matei um marido logo de cara, cantei para ele subir, ele subiu. Foi horrível. Fiquei com a filharada -nunca fui muito parideira, só pari nove-, como ia ganhar dinheiro? Cantando.
Folha - Como foi descoberta?
Elza -
Por Moreira da Silva e Sylvinha Telles. Graças ao Moreira, fui cantar na boate Texas Bar. Uma noite estava lá cantando, e chega a Sylvinha. Cometi a maior gafe. Eu tinha um medo louco de gente, fazia cara de fera. Eu cantando, ela me olhando assim...
Pensei: "Meu Deus do céu, homem eu sei, mas mulher?". Ela disse: "Meu amor, quando acabar quer ir sentar à mesa comigo?".
Eu disse: "A senhora está muito enganada, o que pensa que eu sou?". E ela: "Menina, você é um bicho! Meu nome é Sylvinha Telles. Quero convidar você para gravar na Odeon". Falei: "Dona Sylvinha Telles!!! Deixa eu abraçar a senhora!".
Folha - Ela não tinha segundas intenções mesmo?
Elza -
Não tinha. Também, se tivesse, eu não ia entender, era muito burrinha. Nem sabia o que era bicha, para mim era tudo homem. Depois fiquei amiga. Agora eu sou biba, não tem mais que eu.
Folha - Quando você conseguiu gravar?
Elza -
Em 60. Na época, saía para trabalhar às seis da tarde e era só porta e janela batendo na avenida. "Já vai ela, pois é..." Eu nem aí, a palavra "prostituta" é a mais linda que existe.
Gravei "Se Acaso Você Chegasse", e no dia seguinte estava no rádio, "a voz que veio para ficar". Voltei para casa de manhã, nenhuma janela bateu. Mas que falsidade, que hipocrisia, ô, mundo cão. Antes, meus filhos não tinham com quem brincar, eram filhos de uma prostituta. Depois...
Folha - Houve outras gafes?
Elza -
Muitas. Vem um cara com um ramo de flores: "Trago rosas para outra rosa". Eu respondo: "Já começou errando. Meu nome não é Rosa, não gosto de rosas e não canto rosas". Ele disse: "Você canta minha música, eu gosto". Eu disse: "O senhor pede aí a sua música que eu canto". "'Se Acaso Você Chegasse', sou o autor, Lupicinio Rodrigues." Eu: "Seu Lupicinio!!! Ai, por que o senhor não falou antes?". Ele: "Como, minha filha? Você parecia que ia me morder".
Folha - E o Garrincha?
Elza -
Ah, falar do Mané outra vez? Ele foi uma gracinha, quero falar só o lado bom. O Mané também tinha um lado muito bom. Foi o grande amor da minha vida.
Folha - Como define o novo CD?
Elza -
É um novo início. É uma mulher com muita vida, depois de umas pedras que interromperam a trajetória. Mas eu dei a volta.
Folha - "O Meu Guri", de Chico Buarque, remete a seu filho?
Elza -
Eu conheço esse guri, ele existe na minha vida. Tive um filho que perdi por causa de fome.
Folha - O trecho "não perca tempo assim contando história/ pra que forçar tanto a memória pra dizer/ que a triste hora do fim se faz notória/ continuar a trajetória é retroceder" é autobiográfico?
Elza -
Isso é lindo demais. É muito verdade.


O jornalista Pedro Alexandre Sanches viajou a convite da gravadora Universal.



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