São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010

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CRÍTICA CRÔNICA

Histórias de "Tudo é só isso" batem um bolão de afeto

XICO SÁ
COLUNISTA DA FOLHA

O primeiro dia do pai com o filho homem no estádio é um clássico. Inesquecível aventura, quase sempre bem-sucedida, de repassar o DNA do time do peito.
Levar a filha ao campo é bem mais raro, mas um gesto bem mais nobre e bonito. Gol de placa na memória afetiva.
Assim aconteceu com a jornalista e escritora Milly Lacombe e é o que a autora narra em uma das melhores crônicas reunidas no livro "Tudo É Só Isso -Amor, Conquistas e outros Prazeres Fundamentais". Verão de 1972, Rio de Janeiro, Maraca, Fluminense contra Botafogo.
"Em vão, tenho passado boa parte de minha vida adulta tentando reproduzir a sensação de segurança que as mãos de meu pai me davam", escreve a moça.
Corta para os olhinhos da menina mirando o pai em "contra-plongée", de baixo para cima, a lembrança sugere cena de cinema.
O time da estrela solitária faz 2 a 0. O pai, profeta tricolor como o mais ilustre torcedor do clube -o sr. Nelson Rodrigues, o maior cronista de futebol de todas as galáxias-, conforta aquele pobre e desprotegido coraçãozinho estreante de menina. Prevê a virada em grená, verde e branco.
No segundo tempo desse jogo, tudo acontece, mas não estou aqui para estragar surpresas das histórias. Leiam o livro ou resgatem a súmula daquele jogo.
O futebol, no caso, é apenas uma desculpa temática para Milly tratar das coisas simples e mui delicadas. Essa, talvez, seja a grande missão lírica e religiosa da crônica, o eterno gênero vira-lata de olhos pidões da literatura.
O mesmo grande homem que leva a filha para ver o seu Fluminense aparece em outro momento lindo no livro.
No papel do homem que não bebia água. Ah, a verdade nunca seria inodora, incolor e insípida.

PRIMEIRO AMOR
Sem medo do varejão-Ceasa da existência, aqueles fragmentos e raspas de felicidade, a autora trata do primeiro encontro com o amor da sua vida. O jantar, em um restaurante com a turma, acaba. E se o amor da sua vida não ligar no dia seguinte, será que continuará sendo o amor da sua vida ou apenas o amor da sua quinzena? Cenas dos próximos capítulos.
A vida não é fácil e daí vem outra atribuição dos missionários da crônica, seja esportiva ou de costumes: torná-la digerível e besta, como faz aquele jogador que bate na bola sem precisar olhar para a redonda. Não é desprezo, é amor demais da conta. Estamos no mundo para isso.
O teste do bom cronista é saber aplicar um bandeide na alma, como em outro comovente texto deste livro.

TUDO É SÓ ISSO

AUTORA Milly Lacombe
EDITORA Benvirá
QUANTO R$ 29,90 (232 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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