São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2010

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CRÍTICA ROMANCE

Carrère ergue eficiente "romance de não ficção" a partir de tragédia do tsunami

NOEMI JAFFE
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

O título do último livro de Emmanuel Carrère, "Outras Vidas que Não a Minha", dá bem a ideia do compromisso ético de que o livro se cerca.
Um relato cujo foco, finalidade e meio é o outro; o outro com quem o "eu" aprendeu a transformar sua vida neurótica e derrotista numa vida mais positiva.
Não se trata de um romance. O próprio autor o denomina como um "romance de não ficção".
Na França também se criou um termo, "autoficção", do qual o autor discorda, pois o texto utiliza recursos ficcionais, como a montagem, a aproximação de eventos distantes no tempo, o flashback, mas não chega a se constituir como uma invenção, pois tudo de que fala efetivamente aconteceu, inclusive os próprios nomes das personagens.
Carrère estava em férias no Sri Lanka, em 2004, durante o tsunami. Ele e sua família escaparam milagrosamente, mas presenciaram várias tragédias e, entre elas, especialmente a de um casal amigo que perdeu a filha.
A mulher do autor, de quem ele já tinha decidido se separar, por total incapacidade de manter um relacionamento, se desdobra em cuidados desinteressados para atender ao maior número possível de pessoas. Isso o espanta e o imobiliza.
Ao voltarem para a França, sua cunhada entra em um processo terminal de câncer e se prepara para morrer.
Ela é uma juíza, numa cidade do interior, e trabalha em conjunto com outro juiz, Etiènne, para proteger consumidores pequenos e desprotegidos contra grandes empresas financeiras.
Com a autorização de Etiènne, o autor passa a pesquisar detalhadamente a legislação trabalhista francesa, processos, brechas e interpretações dúbias da lei.
Desta maneira, vai sendo criado um quadro da personalidade de Juliette, a juíza, como uma mulher determinada, forte e sensível. Essa situação também contribui para que o autor se decida categoricamente a mudar sua situação conjugal.
São histórias de grande interesse humano, mas, para um leitor de ficção, é inevitável manter a questão: há valor literário neste relato autobiográfico? Não muito.
O valor do texto se sustenta como uma narrativa eficiente e como lição de vida e compromisso ético de aprendizado a partir do outro.
Isso não é, certamente, pouca coisa. Mas não é o caso de considerá-lo, como muita gente vem fazendo, como um dos melhores romances do ano. Algumas distâncias ainda precisam ser mantidas.

OUTRAS VIDAS QUE NÃO A MINHA

AUTOR Emmanuel Carrère
TRADUÇÃO André Telles
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 34,90 (224 págs.)
AVALIAÇÃO bom


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