São Paulo, sábado, 02 de novembro de 2002

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CRÍTICA

Autor joga com duplos e bifurcações

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O tema do duplo empregado por José Saramago em "O Homem Duplicado" é um velho motivo literário. O próprio narrador do romance menciona "O Homem da Máscara de Ferro", de Dumas, e podemos acrescentar alguns exemplos de Jack London, Henry James e Machado de Assis.
Um dos instrumentos de que o Nobel português faz uso para renovar o antigo mito alemão do "Doppelgänger", literalmente "andarilho em duplicata", é apresentar replicados não só os dois antagonistas mas também a narrativa e muitos de seus elementos.
A trama é simples: um ingênuo professor de história chamado Tertuliano Máximo Afonso reconhece numa fita de vídeo um ator secundário que lhe é a cópia exata. Obsedado pelo fato e após longa investigação descobre o paradeiro do sujeito. Telefona-lhe. Encontram-se. Segundo vaticina a mãe de Tertuliano: "Os gregos vão incendiar Tróia", isto é, o resultado será funesto. Ou quase.
Alguns paralelismos: a mulher do ator Daniel Santa-Clara, cópia de Tertuliano, é funcionária de agência de viagens, enquanto a namorada do professor é funcionária de banco. Ambos os protagonistas têm ocupações subalternas: lente de curso secundário e ator de pontas cinematográficas. O próprio nome do comediante é duplicado, pois se trata de pseudônimo de António Claro.
A narrativa se bifurca no momento em que Tertuliano reúne coragem para telefonar a seu duplo. Até então o narrador bastante participativo de Saramago utilizava quase exclusivamente o professor para dar andamento à narrativa. Digo quase, pois se trata de um narrador que "age": não só digressiona e alardeia seu domínio sobre a trama como a manipula e chega a alterá-la.
É um narrador quase personagem, até no sentido de que lhe podemos dedicar uma análise psicológica. E em dada circunstância ele também se divide, ao contemplar-se a si próprio, mostrando que, quando fez uma certa alusão, esta desencadeou na personagem uma "reação terrível".
As interferências do narrador diminuem a partir da cena do telefonema. Enquanto até ali nós tínhamos um refletor único para iluminar a história -a consciência do professor (além, é claro, dos holofotes sempiternos do narrador)-, agora há algumas novas perspectivas, como a do ator, de sua mulher e da namorada de Tertuliano.
Mas nem tudo é cópia entre Tertuliano e António. Embora simplório e fraco, o professor é um bom sujeito, ao passo que o ator é vigoroso, manipulador e vil. A fraqueza moral de Tertuliano acaba refletindo no aspecto corporal: António é muito mais forte fisicamente. Ou seja, duplos no corpo, possuem alma que são como água e vinho. Ainda que essa hipótese possa ser posta em dúvida apenas pelo final alucinador do romance, até lá é do embate entre alteridades, dos discursos, se quisermos, em conflito, e não das igualdades superficiais, que advém a riqueza do romance.

O Homem Duplicado


    
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (318 págs.)




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