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CRÍTICA
Autor joga com duplos e bifurcações
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
O tema do duplo empregado
por José Saramago em "O
Homem Duplicado" é um velho
motivo literário. O próprio narrador do romance menciona "O
Homem da Máscara de Ferro", de
Dumas, e podemos acrescentar
alguns exemplos de Jack London,
Henry James e Machado de Assis.
Um dos instrumentos de que o
Nobel português faz uso para renovar o antigo mito alemão do
"Doppelgänger", literalmente
"andarilho em duplicata", é apresentar replicados não só os dois
antagonistas mas também a narrativa e muitos de seus elementos.
A trama é simples: um ingênuo
professor de história chamado
Tertuliano Máximo Afonso reconhece numa fita de vídeo um ator
secundário que lhe é a cópia exata.
Obsedado pelo fato e após longa
investigação descobre o paradeiro
do sujeito. Telefona-lhe. Encontram-se. Segundo vaticina a mãe
de Tertuliano: "Os gregos vão incendiar Tróia", isto é, o resultado
será funesto. Ou quase.
Alguns paralelismos: a mulher
do ator Daniel Santa-Clara, cópia
de Tertuliano, é funcionária de
agência de viagens, enquanto a
namorada do professor é funcionária de banco. Ambos os protagonistas têm ocupações subalternas: lente de curso secundário e
ator de pontas cinematográficas.
O próprio nome do comediante é
duplicado, pois se trata de pseudônimo de António Claro.
A narrativa se bifurca no momento em que Tertuliano reúne
coragem para telefonar a seu duplo. Até então o narrador bastante
participativo de Saramago utilizava quase exclusivamente o professor para dar andamento à narrativa. Digo quase, pois se trata de um
narrador que "age": não só digressiona e alardeia seu domínio
sobre a trama como a manipula e
chega a alterá-la.
É um narrador quase personagem, até no sentido de que lhe podemos dedicar uma análise psicológica. E em dada circunstância
ele também se divide, ao contemplar-se a si próprio, mostrando
que, quando fez uma certa alusão,
esta desencadeou na personagem
uma "reação terrível".
As interferências do narrador
diminuem a partir da cena do telefonema. Enquanto até ali nós tínhamos um refletor único para
iluminar a história -a consciência do professor (além, é claro,
dos holofotes sempiternos do
narrador)-, agora há algumas
novas perspectivas, como a do
ator, de sua mulher e da namorada de Tertuliano.
Mas nem tudo é cópia entre
Tertuliano e António. Embora
simplório e fraco, o professor é
um bom sujeito, ao passo que o
ator é vigoroso, manipulador e vil.
A fraqueza moral de Tertuliano
acaba refletindo no aspecto corporal: António é muito mais forte
fisicamente. Ou seja, duplos no
corpo, possuem alma que são como água e vinho. Ainda que essa
hipótese possa ser posta em dúvida apenas pelo final alucinador do
romance, até lá é do embate entre
alteridades, dos discursos, se quisermos, em conflito, e não das
igualdades superficiais, que advém a riqueza do romance.
O Homem Duplicado
Autor: José Saramago
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 36 (318 págs.)
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