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RODAPÉ
Poesia de Drummond não ajuda seus divulgadores no exterior
NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS
"Como começa um pesadelo? Para David Vincent,
arquiteto voltando para casa de
uma viagem de negócios, tudo começou alguns minutos depois das
quatro de uma manhã perdida de
terça-feira, enquanto procurava
um atalho que nunca encontrou."
Essa é a frase com que se abre a série "Os Invasores" (1967-68).
Após presenciar o pouso de um
disco-voador com extraterrestres
dispostos a conquistar nosso planeta, o protagonista (Roy Thinnes) tenta, sem muito sucesso,
convencer em cada episódio seus
conterrâneos céticos de que a invasão já começou.
Quem procure persuadir os leitores da grandeza de um autor estrangeiro, sobretudo quando seus
textos foram pouco e/ou mal traduzidos, raramente acorda de um
pesadelo igual ou pior. Autores
que escrevem nos idiomas menos
frequentados só adquirem renome universal se chegam sãos e salvos ao inglês, francês e, talvez, ao
espanhol e alemão. Quando se
trata de poetas modernos, a travessia dessa alfândega linguística
e a subsequente obtenção do
"green card" ou da "carte de séjour" cultural decorrem tanto da
qualidade e da sorte quanto do
envolvimento ativo, décadas a fio,
de tradutores, críticos e entusiastas variados.
Durante boa parte do século
passado uma das grandes máquinas propagandísticas que promoveram escritores foi a rede dos
partidos comunistas. Graças a
credenciais corretas, muitos dos
mais medíocres, mas também alguns excelentes (o chileno Pablo
Neruda, o turco Nazim Hikmet, o
tcheco Vitezlav Nezval, o grego
Iannis Ritsos), foram divulgados
assim.
Quem quase se beneficiou disso
foi Carlos Drummond de Andrade. Se sua passagem pelo partido
no final da ditadura Vargas não tivesse sido tão breve, é quase certo
que seria dele o primeiro Nobel da
língua portuguesa. Não bastasse o
poeta ser honesto e informado
demais para continuar entre os
"camaradas", invejas literárias
alheias tornaram inevitável sua
saída, pois não havia espaço para
mais de um representante do "sofrido e explorado povo brasileiro". E esse era Jorge Amado.
Perdida tal oportunidade, para
nós, lusófonos, ainda por cima
(ou por baixo) do Brasil, sabedores das qualidades do mineiro,
continua difícil prová-las aos que
não falam nossa língua. Agravando a situação, o mínimo que se
pode dizer é que o próprio Drummond (ou, mais especificamente,
sua poesia) tampouco ajuda seus
divulgadores.
Um dos primeiros versos do
"Canto General", de Neruda, é:
"Era el crepúsculo de la iguana".
Custa a acreditar que haja na terra
um idioma no qual essa metáfora
não dê certo. O que se pode, porém, fazer com a primeira linha
do "Soneto da Perdida Esperança" ("Brejo das Almas")? "Perdi o
bonde e a esperança" parece simples. Seu achado consiste numa
espécie de semi-ambiguidade do
verbo "perder", já que a modo segundo o qual se perde o bonde
(circunstancial e reparável) é diferente, mas não de todo, da maneira como se perde a esperança (definitiva e irreparável). Na mesma
ação, concomitantemente ativa e
passiva, convivem desarmônicos
o trivial e o trágico.
É aqui que começam os problemas, pois seja em inglês, seja em
francês, cada qual das perdas se
expressa com um verbo distinto:
"to miss" e "rater" o bonde ; e "to
lose" e "perdre" a esperança. (Em
Portugal, aliás, o que há não é
bonde e, sim, elétrico, enquanto o
"comboio de corda que se chama
o coração" de Pessoa é, em compensação, um trem no Brasil, embora talvez não em Minas Gerais).
A fruição da poesia drummondiana no exterior requer não somente ótimos tradutores, como
todo um apêndice enciclopédico
de informações biográficas, contextuais, políticas, históricas. Tudo indica que ela não funciona em
doses homeopáticas: suas antologias precisam ser generosas. Nisso, ela exemplifica uma dificuldade mais ampla: o melhor da cultura brasileira não viaja desacompanhado, em fragmentos autosuficientes. Aprecia-se tanto mais
Drummond quanto melhor se conheça o país, o modernismo e
seus contemporâneos (poetas, romancistas, arquitetos, artistas
plásticos).
Enquanto não se superam esses
obstáculos, se bem que a verdade
esteja lá fora, poucos estrangeiros,
e não antes do final de cada episódio da luta cultural, acreditarão
na existência de nosso maior poeta.
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