São Paulo, sábado, 02 de novembro de 2002

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RODAPÉ

Poesia de Drummond não ajuda seus divulgadores no exterior

NELSON ASCHER
COLUNISTA DA FOLHA, EM PARIS

"Como começa um pesadelo? Para David Vincent, arquiteto voltando para casa de uma viagem de negócios, tudo começou alguns minutos depois das quatro de uma manhã perdida de terça-feira, enquanto procurava um atalho que nunca encontrou." Essa é a frase com que se abre a série "Os Invasores" (1967-68). Após presenciar o pouso de um disco-voador com extraterrestres dispostos a conquistar nosso planeta, o protagonista (Roy Thinnes) tenta, sem muito sucesso, convencer em cada episódio seus conterrâneos céticos de que a invasão já começou.
Quem procure persuadir os leitores da grandeza de um autor estrangeiro, sobretudo quando seus textos foram pouco e/ou mal traduzidos, raramente acorda de um pesadelo igual ou pior. Autores que escrevem nos idiomas menos frequentados só adquirem renome universal se chegam sãos e salvos ao inglês, francês e, talvez, ao espanhol e alemão. Quando se trata de poetas modernos, a travessia dessa alfândega linguística e a subsequente obtenção do "green card" ou da "carte de séjour" cultural decorrem tanto da qualidade e da sorte quanto do envolvimento ativo, décadas a fio, de tradutores, críticos e entusiastas variados.
Durante boa parte do século passado uma das grandes máquinas propagandísticas que promoveram escritores foi a rede dos partidos comunistas. Graças a credenciais corretas, muitos dos mais medíocres, mas também alguns excelentes (o chileno Pablo Neruda, o turco Nazim Hikmet, o tcheco Vitezlav Nezval, o grego Iannis Ritsos), foram divulgados assim.
Quem quase se beneficiou disso foi Carlos Drummond de Andrade. Se sua passagem pelo partido no final da ditadura Vargas não tivesse sido tão breve, é quase certo que seria dele o primeiro Nobel da língua portuguesa. Não bastasse o poeta ser honesto e informado demais para continuar entre os "camaradas", invejas literárias alheias tornaram inevitável sua saída, pois não havia espaço para mais de um representante do "sofrido e explorado povo brasileiro". E esse era Jorge Amado.
Perdida tal oportunidade, para nós, lusófonos, ainda por cima (ou por baixo) do Brasil, sabedores das qualidades do mineiro, continua difícil prová-las aos que não falam nossa língua. Agravando a situação, o mínimo que se pode dizer é que o próprio Drummond (ou, mais especificamente, sua poesia) tampouco ajuda seus divulgadores.
Um dos primeiros versos do "Canto General", de Neruda, é: "Era el crepúsculo de la iguana". Custa a acreditar que haja na terra um idioma no qual essa metáfora não dê certo. O que se pode, porém, fazer com a primeira linha do "Soneto da Perdida Esperança" ("Brejo das Almas")? "Perdi o bonde e a esperança" parece simples. Seu achado consiste numa espécie de semi-ambiguidade do verbo "perder", já que a modo segundo o qual se perde o bonde (circunstancial e reparável) é diferente, mas não de todo, da maneira como se perde a esperança (definitiva e irreparável). Na mesma ação, concomitantemente ativa e passiva, convivem desarmônicos o trivial e o trágico.
É aqui que começam os problemas, pois seja em inglês, seja em francês, cada qual das perdas se expressa com um verbo distinto: "to miss" e "rater" o bonde ; e "to lose" e "perdre" a esperança. (Em Portugal, aliás, o que há não é bonde e, sim, elétrico, enquanto o "comboio de corda que se chama o coração" de Pessoa é, em compensação, um trem no Brasil, embora talvez não em Minas Gerais).
A fruição da poesia drummondiana no exterior requer não somente ótimos tradutores, como todo um apêndice enciclopédico de informações biográficas, contextuais, políticas, históricas. Tudo indica que ela não funciona em doses homeopáticas: suas antologias precisam ser generosas. Nisso, ela exemplifica uma dificuldade mais ampla: o melhor da cultura brasileira não viaja desacompanhado, em fragmentos autosuficientes. Aprecia-se tanto mais Drummond quanto melhor se conheça o país, o modernismo e seus contemporâneos (poetas, romancistas, arquitetos, artistas plásticos).
Enquanto não se superam esses obstáculos, se bem que a verdade esteja lá fora, poucos estrangeiros, e não antes do final de cada episódio da luta cultural, acreditarão na existência de nosso maior poeta.


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