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DRAUZIO VARELLA
Vinte anos de avanços contra a Aids
No início dos anos 80, tratei os primeiros casos de
Aids em São Paulo, o epicentro da
epidemia brasileira. Eram invariavelmente homens homossexuais, que contavam história de
fraqueza progressiva, diarréia
crônica, astenia, emagrecimento
e solidão. Esse estágio precedia
outro, de febre e infecções graves.
Na fase mais avançada da
doença, a infecção mais frequente
era uma pneumonia provocada
por P. carinii, um germe que ataca os espaços entre os alvéolos
pulmonares, dificultando a oxigenação do sangue. A doença provocava tosse seca e febre e deixava
o fôlego cada vez mais curto. No
final, a pessoa mal conseguia respirar, depois de esforços mínimos,
como amarrar o sapato ou buscar
um copo de água na cozinha.
Muitos chegavam com tanta falta
de ar que iam direto para a UTI.
Os que escapavam desse quadro
inicial experimentavam algumas
semanas de trégua e caíam de cama outra vez, com doenças estranhas, provocadas por germes banais, com os quais estamos habituados a conviver na rotina diária. A debilidade imunológica
provocada pelo HIV tornava o organismo infectado presa fácil do
primeiro agente oportunista.
Surgiam, então, outras pneumonias, meningites, encefalites,
infecções intestinais, oculares e
um tipo de câncer caracterizado
por manchas avermelhadas que
se espalhavam pelo corpo e estigmatizavam seus portadores.
Essas infecções, que se sucediam
em ritmo febril, debilitavam os
que sobreviviam a elas de tal forma que seus corpos acabavam pele e osso. A imagem da Aids desses
primeiros anos era a de homens
caquéticos, de rosto encovado e
olhar sofrido, como nos campos
de concentração da Segunda
Guerra.
Depois vieram os usuários de
droga injetável. Havia uma epidemia de cocaína injetável correndo solta na periferia das grandes cidades brasileiras, sem que
nos déssemos conta dela. Por incrível que pareça, por volta de
1980, pensávamos que cocaína
era droga de classe média alta,
proibitiva às populações de baixa
renda. Santa ingenuidade!
Se tratar homens homossexuais, muitas vezes altamente intelectualizados, já era difícil, devido às características da doença,
acompanhar jovens dependentes
de cocaína com a vida desorganizada pelo abuso da droga foi a experiência mais frustrante. Em geral, não resistiam ao primeiro
ataque oportunista.
Em 1985 ou 1986 -não me lembro bem-, atendi a uma senhora
de 60 anos, com ar matronal, cabelo armado e maquiagem discreta, que trazia no olhar uma
angústia inesquecível. Havia sido
infectada pelo marido, único parceiro sexual em mais de 30 anos
de casamento. Tinha um casal de
filhos adultos e morreu ainda antes do homem que a infectou.
Homens homossexuais, usuários de droga injetável e um contingente cada vez mais numeroso
de mulheres e seus filhos recém-nascidos viveram a saga da Aids
sem nenhum tratamento disponível que atacasse o HIV com eficácia.
Em 1986, surgiu o AZT, depois
vieram o ddI e outros medicamentos com ação antiviral documentada em estudos clínicos, mas
que, na verdade, pouco ajudavam na prática. Mais tarde, soube-se que a falta de atividade estava ligada ao fato de essas drogas serem empregadas isoladamente (monoterapia).
Em dezembro de 1995, a comunidade científica assistiu, perplexa, ao aparecimento dos inibidores de protease, drogas muito
mais potentes para o tratamento
do HIV. Além de dispor delas,
houve uma mudança fundamental no paradigma do tratamento:
os medicamentos passaram a ser
administrados em associação, jamais isoladamente, para evitar
que o vírus pudesse desenvolver
resistência rapidamente.
Foi uma revolução. O primeiro
doente que tratei com esses novos
medicamentos estava à beira da
morte, depois de uma sucessão interminável de infecções oportunistas. Era um rapaz de 30 anos
tão doente que um colega mais
novo da equipe me chamou a
atenção para o fato de continuarmos insistindo com medidas heróicas num caso daqueles: "Estamos prolongando a vida ou o sofrimento?", perguntou ele.
Com o novo tratamento, em 15
dias o rapaz teve alta. Três meses
depois, pesava dez quilos a mais e,
em seis meses, pediu um regime:
havia engordado 20 quilos.
No Brasil, que garante acesso
gratuito universal às drogas anti-HIV, a imagem da doença mudou radicalmente. Quase não há
mais doentes caquéticos em fase
terminal de evolução, e as mortes
tornam-se cada vez mais raras.
Há 20 anos, quando a epidemia
surgiu, a medicina não dispunha
de tratamentos eficazes para
doenças virais. Naquela época,
nenhum de nós podia imaginar
que, graças à concentração de esforços e criatividade científica,
avançaríamos tão depressa no
combate a um vírus mutante e
traiçoeiro como o HIV.
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