São Paulo, sábado, 02 de dezembro de 2000

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DRAUZIO VARELLA

Vinte anos de avanços contra a Aids

No início dos anos 80, tratei os primeiros casos de Aids em São Paulo, o epicentro da epidemia brasileira. Eram invariavelmente homens homossexuais, que contavam história de fraqueza progressiva, diarréia crônica, astenia, emagrecimento e solidão. Esse estágio precedia outro, de febre e infecções graves.
Na fase mais avançada da doença, a infecção mais frequente era uma pneumonia provocada por P. carinii, um germe que ataca os espaços entre os alvéolos pulmonares, dificultando a oxigenação do sangue. A doença provocava tosse seca e febre e deixava o fôlego cada vez mais curto. No final, a pessoa mal conseguia respirar, depois de esforços mínimos, como amarrar o sapato ou buscar um copo de água na cozinha. Muitos chegavam com tanta falta de ar que iam direto para a UTI.
Os que escapavam desse quadro inicial experimentavam algumas semanas de trégua e caíam de cama outra vez, com doenças estranhas, provocadas por germes banais, com os quais estamos habituados a conviver na rotina diária. A debilidade imunológica provocada pelo HIV tornava o organismo infectado presa fácil do primeiro agente oportunista.
Surgiam, então, outras pneumonias, meningites, encefalites, infecções intestinais, oculares e um tipo de câncer caracterizado por manchas avermelhadas que se espalhavam pelo corpo e estigmatizavam seus portadores.
Essas infecções, que se sucediam em ritmo febril, debilitavam os que sobreviviam a elas de tal forma que seus corpos acabavam pele e osso. A imagem da Aids desses primeiros anos era a de homens caquéticos, de rosto encovado e olhar sofrido, como nos campos de concentração da Segunda Guerra.
Depois vieram os usuários de droga injetável. Havia uma epidemia de cocaína injetável correndo solta na periferia das grandes cidades brasileiras, sem que nos déssemos conta dela. Por incrível que pareça, por volta de 1980, pensávamos que cocaína era droga de classe média alta, proibitiva às populações de baixa renda. Santa ingenuidade!
Se tratar homens homossexuais, muitas vezes altamente intelectualizados, já era difícil, devido às características da doença, acompanhar jovens dependentes de cocaína com a vida desorganizada pelo abuso da droga foi a experiência mais frustrante. Em geral, não resistiam ao primeiro ataque oportunista.
Em 1985 ou 1986 -não me lembro bem-, atendi a uma senhora de 60 anos, com ar matronal, cabelo armado e maquiagem discreta, que trazia no olhar uma angústia inesquecível. Havia sido infectada pelo marido, único parceiro sexual em mais de 30 anos de casamento. Tinha um casal de filhos adultos e morreu ainda antes do homem que a infectou.
Homens homossexuais, usuários de droga injetável e um contingente cada vez mais numeroso de mulheres e seus filhos recém-nascidos viveram a saga da Aids sem nenhum tratamento disponível que atacasse o HIV com eficácia.
Em 1986, surgiu o AZT, depois vieram o ddI e outros medicamentos com ação antiviral documentada em estudos clínicos, mas que, na verdade, pouco ajudavam na prática. Mais tarde, soube-se que a falta de atividade estava ligada ao fato de essas drogas serem empregadas isoladamente (monoterapia).
Em dezembro de 1995, a comunidade científica assistiu, perplexa, ao aparecimento dos inibidores de protease, drogas muito mais potentes para o tratamento do HIV. Além de dispor delas, houve uma mudança fundamental no paradigma do tratamento: os medicamentos passaram a ser administrados em associação, jamais isoladamente, para evitar que o vírus pudesse desenvolver resistência rapidamente.
Foi uma revolução. O primeiro doente que tratei com esses novos medicamentos estava à beira da morte, depois de uma sucessão interminável de infecções oportunistas. Era um rapaz de 30 anos tão doente que um colega mais novo da equipe me chamou a atenção para o fato de continuarmos insistindo com medidas heróicas num caso daqueles: "Estamos prolongando a vida ou o sofrimento?", perguntou ele.
Com o novo tratamento, em 15 dias o rapaz teve alta. Três meses depois, pesava dez quilos a mais e, em seis meses, pediu um regime: havia engordado 20 quilos.
No Brasil, que garante acesso gratuito universal às drogas anti-HIV, a imagem da doença mudou radicalmente. Quase não há mais doentes caquéticos em fase terminal de evolução, e as mortes tornam-se cada vez mais raras.
Há 20 anos, quando a epidemia surgiu, a medicina não dispunha de tratamentos eficazes para doenças virais. Naquela época, nenhum de nós podia imaginar que, graças à concentração de esforços e criatividade científica, avançaríamos tão depressa no combate a um vírus mutante e traiçoeiro como o HIV.



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