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São Paulo, terça-feira, 02 de dezembro de 2003

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SHOW

A amizade de Caetano com a música popular americana

SÉRGIO DÁVILA
DA REPORTAGEM LOCAL

No fim de semana, Caetano Veloso fez os dois primeiros de série de 12 shows beneficentes em que a base do repertório são standards norte-americanos, que comporão CD a ser lançado em março -"A Foreign Sound".
A apresentação teve lugar no novo Baretto, o bar do novo hotel Fasano. Os ingressos custam R$ 500 por pessoa e vão para um hospital para pacientes com câncer de Barretos, no interior de São Paulo, por indicação do ex-ministro da saúde José Serra.
Na platéia, balançando seus bling-blings, estava o que já se chamou "le tout São Paulô", a prestigiar um dos melhores músicos brasileiros e uma família -a Fasano- que sempre teve uma forte ligação com a noite musical de qualidade da cidade.
Pois a comparação é inevitável: estávamos todos no Rick's American Bar, o mitológico bar encravado no Marrocos que o personagem de Humphrey Bogart comanda no filme "Casablanca" (1942). Aqui dentro, no Baretto/ Rick's, um país em que tudo é possível, a ilha da fantasia; lá fora, contida, a Segunda Guerra, o nazismo, a África -o Brasil.
Mas os 70 presentes nessa primeira seção da noite de sábado estão interessados no show. E o show não decepcionará, com momentos brilhantes e antológicos, e poucos tropeços. Começa com a frase, muito cara a Caetano, "O cinema falado é o grande culpado da transformação", do samba "Não tem Tradução", de Noel Rosa, uma declaração de princípios do que virá depois.
É a única em português do bloco gringo que se inicia, que terá como zona de transição o mix "Baby" (dele) e "Diana" (de Paul Anka), nesta noite em versão de cordas mais pronunciadas, executada por Moreno Veloso (cello e percussão), Domenico Lancelotti (bateria), Pedro Sá (guitarra) e Jorge Helder (baixo acústico).
O flerte do músico com o cancioneiro anglo-saxão não é recente. A capa de seu disco "Qualquer Coisa", de 1975, já "relia" a de "Let it Be", dos Beatles, e trazia "Eleanor Rigby", "For No One" e "Lady Madonna"; houve também a gravação posterior de "Billie Jean", de Michael Jackson, que misturou com muita felicidade a "Nega Maluca" -embora não tenha dado sorte com "Black and White".
Nessa noite, a novidade começa na forma de "So In Love", "I Only Have Eyes for You" e "Stardust", que formou muitos casais nos bailinhos de fim de ano do Yazigi nos anos 50. A primeira é ele e violão, a segunda ganha um insuspeito pandeiro, a terceira revela falsetes delicados.
Aqui, Caetano usa o que aprendeu com seu mestre João Gilberto: pegar uma música conhecida, vivissecá-la, dissecá-la e então remontar tudo outra vez, com as mesmas partes, mas não necessariamente na mesma ordem e seguindo a sintaxe particular do dr. Frankenstein musical que comanda a operação -no caso, baiana. Não costuma dar errado.
Pois não deu errado nesse nem daria no próximo bloco, mais contemporâneo, que começa com uma "Nature Boy" sem grandes novidades, mas chega ao ponto alto do show: "Come as You Are", do Nirvana . Numa palavra: sensacional. Para começar, a marcação é dada pelo tamborim. Para terminar, a linha de guitarra original é refeita no cello e o baixo elétrico renasce no dedilhado do contrabaixo acústico. Faz lembrar que, atitude e revolução à parte, o Nirvana contava com um melodista refinado. A platéia urra.
Segue-se uma "Summertime" mais blues de raiz do que gerswhiniana ou janisjopliniana, uma "Love for Sale" (que não estava no programa) à capella e "Cry Me a River" com timbau.
Os tropeços. Caetano Veloso brilha justamente nas canções norte-americanas reconstruídas por ele, como as citadas acima. Mas o mesmo não ocorre quando ele interpreta os standards como se fosse um grupo de lounge de hotel de Manhattan, sem o mesmo talento daquele. É o caso de "Nature Boy", "Body and Soul", "Sophisticated Lady".
Mais: não era preciso pagar o pedágio de "Sampa". Por fim: por uma questão musical que é quase geopolítica, não devia cantar "Cucurucucu Paloma", como faz quase no final. É gritante o quanto mais à vontade ele está na América Latina de Capinan do que na "América" de Bush.
Aí entra a única música nova de Caetano na noite: a divertida "Diferentemente", samba-canção que começa citando Madonna e termina com "Diferentemente de Osama e Condoleezza/ Eu não acredito em Deus".
A noite se encerra com uma apropriada "The Carioca", que ele canta com meneios de Carmem Miranda. No bis, "Love me Tender", quase em falsete, fazendo um contraponto interessante ao vozeirão de Elvis, como a avisar que isso aqui, afinal de contas, é arte e não karaokê.
O rei do rock é a chave para a volta a "Casablanca" e a conclusão: a ligação entre Caetano Veloso e a MPNA (a música popular norte-americana) pode ser o começo de uma grande amizade.


Caetano Veloso
   
Onde: Baretto (r. Vittorio Fasano, 88, Jardins, SP, tel. 0/xx/11/3896-4000)
Quando: 5, 6, 12 e 13/12, às 21h e às 23h
Quanto: R$ 500 (todos esgotados)



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