|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Crítica/Bienal em questão
Na mostra, a ética eclipsou a estética
Ao eleger a arte colaborativa, documental, com pretensões políticas, exposição assume risco de ser monocórdia e redundante
Contexto marcado por propostas sem transcendência acaba por prejudicar a leitura de poéticas singulares
JULIANA MONACHESI
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
A 27ª Bienal de São Paulo é
um problema, na melhor acepção do termo. Depois de duas
bienais corretas e "agradáveis",
a presente mostra equipara-se
à 24ª edição -em que o conceito de antropofagia cultural iluminava os processos de construção de identidade-, que gerou debate e propiciou uma releitura da historiografia da arte.
"Como Viver Junto" elege
uma vertente da produção contemporânea -a de práticas colaborativas, arte engajada política e socialmente e, por decorrência, arte documental- e
busca dar consistência teórica a
essa produção ao apresentá-la,
em massa, como uma tendência forte na cultura de hoje. Não
por acaso a aposta curatorial
em obras e artistas que têm como referente conflitos étnicos,
religiosos e ideológicos, questões de gênero, raça e desigualdade socioeconômica coincide
com uma avalanche de lançamentos editoriais sobre a realidade no Oriente Médio, na
África, sobre o dessemelhante.
O assunto está no ar e a curadoria o apanhou no ato, propondo a sua discussão no âmbito da arte. O risco, como apontam certas críticas à Bienal, é
um resultado monocórdio. Expor lado a lado, para tratar do
esfacelamento das utopias, as
impressões em papel de parede
de Barbara Visser -fotografias
de poltronas e cadeiras modernistas quebradas-, a videoinstalação de Lars Ramberg -que
documenta a construção de um
edifício onde antes se erigia a
sede do governo da República
Democrática Alemã- e as "Ant
Chairs" de Arne Jacobsen "corrigidas" pelo coletivo Superflex
é de fato redundante.
Por outro lado, enfileirar as
fotos de Guy Tillim, que retratam a paisagem urbana de
Kinshasa, capital da República
Democrática do Congo, os resquícios da era colonial no país e
a mobilização e ativismo durante as eleições em 2006, em
frente à série de Mauro Restiffe
que flagra Brasília no dia da
posse de Lula, em 2003, gera
confusões, podendo sugerir
que ambos são fotojornalistas,
o que não é fato no caso do artista brasileiro. Nestes dois
exemplos, o resultado é o enfraquecimento dos trabalhos pela
opção desastrada no estabelecimento de diálogos.
Mas a monotonia não está
apenas na montagem da exposição, está na escolha dos curadores de privilegiar a postura
ética do artista em detrimento
da experiência estética que as
obras poderiam gerar.
Assim, vê-se o cuidado da artista palestina Ahlam Shibli ao
fotografar gays e transexuais
que abandonaram os países do
leste para poderem viver suas
opções sexuais; vê-se nos vídeos de Esra Ersen, nascida em
Ancara, o interesse pelas dificuldades de imigrantes turcos
para se adaptar ao idioma alemão ou pelos meninos de rua
que relatam seus problemas
em Istambul.
Prevalece no embate com
grande parte das obras em vídeo e fotografia a impressão de
que tudo foi negociado e muito
respeitoso entre artista e retratado (Paula Trope, Claudia Andujar, Pieter Hugo etc.).
A prerrogativa ética em detrimento da estética é ainda
mais evidente nos projetos colaborativos: Tadej Pogacar &
Daspu, Eloisa Cartonera, Taller
Popular de Serigrafía, Long
March Project. Causas nobres
-defesa de minorias, de economias paralelas, do direito à manifestação política, das práticas
artesanais etc.- cuja apresentação em um espaço dedicado à
arte peca pela ausência de qualquer tipo de transcendência. E
esse contexto acaba por prejudicar a apreensão de poéticas
singulares: a instalação de Jane
Alexander logo na entrada da
Bienal, com cercas, arame farpado e seguranças uniformizados, é de uma literalidade no
conjunto da exposição que inviabiliza o fascínio pela produção de uma artista renomada
que logrou com seus "garotos
carniceiros" (seres híbridos de
homem e monstro) construir
um emblema dos paradoxos da
condição humana.
Nada contra todos os honoráveis valores em jogo na exposição (ética, respeito, inclusão
etc.), mas a Bienal fica mais instigante justamente nos momentos em que real e ficcional
se confundem (Ola Pehrson,
Yael Bartana, Michael Snow,
Shaun Gladwell, Ann Lislegaard), em que política e humor
se mesclam (Minerva Cuevas,
Jarbas Lopes, Antal Lakner,
Sanghee Song, Loulou Cherinet) ou quando a crítica está
amparada em uma formalização genial, como na obra "Costumes", de Laura Lima.
O maior problema, e aqui na
acepção negativa do termo, é
entender como uma Bienal que
assume um tal esgarçamento
de fronteiras entre as práticas
culturais pode ignorar as experiências de arte colaborativa
on-line e os movimentos de
a(r)tivismo que eclodiram com
a democratização do acesso à
internet, cuja atuação é inseparável da organicidade da rede?
27ª BIENAL DE SÃO PAULO
Texto Anterior: Música: Elton Medeiros e Aurea Martins cantam juntos no Sesc Pompéia Próximo Texto: Mostra vai 0 até o dia 17 Índice
|