São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2010

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Os mil e um pratos

Aos 130 anos do marco simbólico da imigração, cozinha árabe ainda é confundida com turca e armênia ; rótulo também ignora países árabes africanos

Karime Xavier/Folhapress
Ensopado de verduras, carne e frango do Abu-zuz; abaixo, ingredientes: mulukhie, pão sírio e vinagrete

MARINA FUENTES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Quando os primeiros libaneses chegaram ao Brasil com passaporte turco -à época, o Líbano estava sob domínio otomano-, se deu início à confusão. Os equívocos na hora de distinguir povos árabes de turcos perduram até hoje, em plena comemoração do marco simbólico dos 130 anos de imigração árabe no Brasil, e se estenderam para a gastronomia.
O que se convencionou chamar de comida árabe é, na realidade, sírio-libanesa -esfihas, quibes, tabule, fatouche e pastas, ou, entre os pratos quentes, charutos de uva e legumes recheados, como abobrinha e berinjela.
Ainda que sejam feitas à moda do Líbano e da Síria, chamar essas especialidades de cozinha árabe não é exatamente um erro, segundo Samira Adel Osman, especialista em imigração árabe.
"São populares para libaneses, sírios, gregos, turcos, armênios e mesmo iranianos por causa do domínio dos turcos naquelas regiões. A alimentação é um dos primeiros aspectos de apropriação e trocas culturais."
Além da influência de vizinhos, há ingredientes comuns. Cordeiro, trigo, castanhas, frutas secas, grão-de-bico, coentro e hortelã são alguns deles. Pratos que, por mais que tenham modos de preparo próprios em cada país, guardam semelhanças.

ENSOPADOS
Os ícones da cozinha sírio-libanesa são de fato o arroz com feijão da comunidade, mas nem sempre são consumidos da mesma maneira que conhecemos.
"Bem cedo, em Beirute, não se toma nada além de café. Mas, às 10h, é comum comer homus, coalhada, fava e manuche, uma esfiha de zaatar", relata a banqueteira libanesa Doha Naufal.
Mas nem tudo da cozinha árabe é tão trivial. Escondidos atrás de portinhas na região de 25 de Março, Brás e Bom Retiro, pequenos locais guardam receitas diferentes. No Gebran, não há semana em que não se prepare as tripas de carneiro recheadas.
"Estou em uma região que não aceita coisas muito exóticas. Mas já fiz até cabeça de cordeiro recheada", conta Jorge Ghachache, filho de sírios e proprietário da casa.
Outra especialidade pouco conhecida é o burghol, com trigo grosso, grão-de-bico, carne e cebola, servido com coalhada seca, um exemplo de prato ancestral que pode ter sido criado por qualquer povo -incluindo nômades.
Não muito longe dali, o Abu-zuz serve um ensopado de verdura chamado mulukhie às quintas. O prato, que já foi apelidado de "feijoada árabe", é originário do Egito e feito com uma verdura homônima, importada desidratada e aqui cozida com caldo de galinha ou de carne e servida com arroz, carne, frango, pão sírio e vinagrete.
Cintia Ambar Moujaes, proprietária da casa e filha de pai libanês, diz que tanto no Líbano quanto no Egito o mulukhie é um prato familiar e tido como reconfortante.

ÁRABES AFRICANOS
Pela proximidade de fronteiras e pela conquista otomana que espalhou costumes pela Ásia, as cozinhas da Armênia e da Turquia têm semelhanças com as dos países muçulmanos vizinhos. Mas, com idioma próprio, não podem ser chamadas de árabes.
As diferenças surgem em meio às especialidades comuns. Com massa mais fina e abertas como "canoas", as pides são as equivalentes turcas das esfihas. O kebab, por sua vez, é associado à cozinha turca, mas é comum em boa parte do Oriente Médio.
Já na cozinha armênia surgem peculiaridades como o basturmalã -finas fatias de carne curada e condimentada- e pratos com ovo.
Curiosamente, os países árabes da África, como o Egito e o Marrocos, nunca são lembrados na hora de relacionar a cozinha árabe. Apesar de tecnicamente serem tão árabes quanto as demais, essas mesas têm características próprias garantidas pela diferença geográfica.
"O Magreb [região que abrange Marrocos, Saara Ocidental, Argélia e Tunísia] tem peculiaridades, como um cuscuz típico", diz Samira. "Aliás, magreb significa ocidente [do mundo árabe]. Talvez por isso o Egito esteja, em termos culinários, no meio do caminho entre os dois, incorporando um pouco de cada um, mas com preferência por peixes -não nos esqueçamos do Nilo."


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