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ARTES
Biografia feita em 1973 por Peter Watkins mostra o pintor como um refém de seu desejo e ganha exibições na França
Pesadelos de Edvard Munch renascem no cinema
JEAN-LUC DOUIN
DO "MONDE"
Duramente criticada em seu
lançamento em 1973, a biografia
do pintor norueguês Edvard
Munch (1863-1944) feita por Peter
Watkins é relançada na França.
A obra foi considerada por Ingmar Bergman "um trabalho de
gênio". Profundamente subjetivo
(o cineasta coloca nele seu próprio "grito"), o filme utiliza um
método revolucionário: uma
montagem alquímica mistura a
elaboração de quadros, uma cronologia alterada por reminiscências obsessivas, o "leitmotiv" de
uma memória assombrada por
cenas-chaves e intervenções de
personagens, que, como se estivessem sendo entrevistados, assumem juízos morais e estéticos.
O alcance dessas confissões-intervenções filmadas cara a cara
incomoda o esquema pedagógico
do projeto, já que Watkins quis
que elas fossem relativamente
sem controle, espaços de liberdade oferecidos aos atores não profissionais envolvidos na aventura.
Carregado de angústia, de cores
espasmódicas, de ambiências crepusculares, de tensão sexual e de
palidezes moribundas, "Edvard
Munch" explora o contexto ideológico (o trabalho infantil na indústria), médico-familiar (tuberculose hereditária, agonias sem
fim, mulheres e crianças cuspindo
sangue), artística (salões de café
enfumaçados onde se reunia a
boemia de Christiania, como o
pintor Christian Krohg e o escritor "sedicioso" Hans Jaeger).
Desenhando freneticamente,
arranhando, entalhando a tela, incidindo a matéria com um nervosismo revelador da intensidade
emocional, Munch encarna um
homem refém do desejo e assombrado por dois fantasmas -a
doença e o puritanismo.
Refaz ao infinito as hemorragias
pulmonares dos parentes, o ambiente de fogo e enxofre que o cerca. Os anjos negros que o velaram
no berço têm aqui a figura de um
pai que lhe impõe o retorno para
casa toda noite para a prece diária
ou as máscaras de uma burguesia
hipócrita que reprova seus companheiros e demoniza a libido.
Nessa segunda metade do século 19, a polícia controla a prostituição e as doenças venéreas, enquanto à margem dos salões que
vivem de condenar as blasfêmias
se reproduzem artistas que "falam de Marx e de Darwin" e mulheres "insubmissas", decididas a
viver sua própria lei.
Munch, como seus amigos Jaeger, Ibsen ou Strindberg, é refém
de um doloroso paradoxo. Ele faz
parte desses homens decididos a
denunciar a escravidão do casamento e a não mortificar seus instintos, mas que sofrem ao ver suas
amantes se converterem ao amor
livre e enxergam as mulheres liberadas como vampiras.
O filme é ritmado por esse triplo
pesadelo: tosses de sangue sobre
travesseiros brancos, ecos recorrentes de choros e gemidos do artista; a eterna visão dessa senhora
Heiberg, uma mulher casada de
quem ele deseja a pele macia, mas
que se entrega a outro homem e
que ele passa a perseguir e a
ameaçar ("Você acabará feia e deformada, e eu rirei disso!").
Expressão íntima da melancolia, de uma angústia que colore
céus e nuvens de vermelho-sangue, a pintura de Munch é divagação de um frustrado, tensão psíquica e sexual, exacerbação de
uma "alma ferida" por pulsões
não satisfeitas e apaixonada por
madonas com rostos cadavéricos.
Esse é o segredo de seu imaginário, em que seres apaixonados de
rostos disformes se devoram e
uma sexualidade voraz freqüentemente termina no túmulo. Daí
vem o equívoco, denunciado por
Kokoschka: "O espírito de Munch
lhe permite diagnosticar um terror justamente onde se acreditava
estar o progresso social".
Aí mora o sublime horror de
Munch, marca de uma subversão
carnal e de um imaginário cósmico. Corpos condenados ao grito
infinito no torpor das noites por
essa maldição que ainda faz sentido: "O ciúme não vem do medo
de perder, mas do de partilhar".
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