São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


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"À ESPERA DE UM MILAGRE"
Ambição é virtude e defeito do filme

da Redação

Existe tal profusão de coisas na ficção de "À Espera de um Milagre" que é fácil perder-se nelas: há um corredor da morte, prisioneiros maus e outros inocentes, uma mulher cancerosa e outra compreensiva, um supervisor compreensivo, execuções na cadeira elétrica, um domador de ratos, um guarda penitenciário sádico -por sinal, sobrinho do governador- e outros surpreendentemente bons, um homem capaz de fazer milagres.
As temáticas também proliferam, às vezes claras, às vezes sub-reptícias: a pena de morte, o racismo, a perversidade, o arrependimento.
Ninguém se espantará que a desigualdade seja a marca desse museu de quase tudo. Em "Um Sonho de Liberdade", seu filme anterior, pelo qual ganhou o Oscar de melhor roteiro, Frank Darabont havia mostrado surpreendente habilidade em conduzir "subplots" com energia, ao mesmo tempo em que os usava para nos tapear sobre as ações do personagem principal -que, disfarçadamente, cavava um túnel e preparava sua fuga.
Aqui, ao adaptar o romance de Stephen King, Darabont parece antes de mais nada ter se detido sobre um desafio: seria capaz de juntar tantos elementos num só filme sem perder o fio da meada?
De fato, os "subplots" são numerosos o bastante para que esqueçamos o essencial: estamos diante da história de um homem -o guarda Paul Edgecomb (Tom Hanks), de uma penitenciária da Louisiana- cujo destino consiste em viver com a morte. Ele é o encarregado do pavilhão onde ficam os condenados à morte; é quem deve suportar e, se possível, aliviar as tensões do local.
Ali ele receberá o prisioneiro John Coffey (Michael Clarke Duncan), um negro quase tão grande quanto Shaquille O'Neal, ameaçador, nada bonito. No entanto, Edgecomb perceberá que esse homem não é o que parece. Como no "Freaks", de Tod Browning, onde os monstros se revelam mais humanos e sensíveis do que os humanos, Coffey se mostrará uma criança.
Mas uma criança especial. Coffey tem dons de curandeiro, é um iluminado, capaz de injetar vida nos seres que toca, retirando o mal que ali existe. Também pode transferir sua imensa vitalidade às pessoas de que gosta, como Edgecomb.
O filme é narrado em "flashback", e Darabont faz bom uso disso. A ação principal se dá em 1935, o que ajuda a enfatizar algumas questões que aborda (o racismo, motivo central da condenação de Coffey, e a atmosfera tensa da era da Depressão, motivo subsidiário).
Ao mesmo tempo, como vemos Edgecomb velhíssimo, em um asilo, ele admitirá que a vitalidade que Coffey lhe transmitiu não deixa de ser uma maldição, pois o dom da longa vida trouxe, como amarga compensação, a dor de ver todos os parentes e amigos morrerem.
Em suma, "À Espera de um Milagre" está longe de ser um filme tolo. Suas limitações são proporcionais a sua ambição. Oscilamos do drama penitenciário à fábula e daí ao melodrama. Alguns personagens permanecem na tela minutos e minutos sem chegarem a compor nada mais que um clichê de vilania -caso de Wetmore, o perverso filhinho de mamãe.
Em compensação, é impossível negar certos momentos sublimes. O melhor deles -aquele que vale todo o filme- é a cena em que um condenado à morte vê, pela primeira vez na vida, um filme. O filme é "O Picolino". Na cena, Fred Astaire e Ginger Rogers dançam "Cheek-to-Cheek". O condenado comenta: "O céu existe".
Aí talvez esteja o essencial do filme: o céu existe, sim, mas existe no cinema. É essa matéria delicada que nunca está onde estamos. Ou, dito de outra forma: a coisa mais difícil do mundo é fazer coincidir o corpo físico e o espírito do homem em um mesmo lugar. Somos a impossibilidade de articular o físico e o espiritual, o real e o imaginário. Por um momento isso pode acontecer e a isso se chamará milagre.
Em seu filme, Frank Darabont não chega a exprimir satisfatoriamente sua idéia. Mas tenta, o que não é pouco, e em alguns momentos chega a fazê-lo. Não é tudo, mas é o bastante para distingui-lo num ano em que o Oscar promete ser de uma mediocridade e de uma baixeza de princípios assombrosa. (IA)


Avaliação:   

Filme: À Espera de um Milagre (The Green Mile) Direção: Frank Darabont Produção: EUA, 99 Com: Tom Hanks, Michael Clarke Duncan Quando: a partir de hoje, no Cinearte 1, Iguatemi 1 e circuito

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