São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2010

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MARCELO COELHO

Machezas de escritor


Autores famosos, como Hemingway, puseram em prática a tese do quanto menos, melhor


ENTÃO VOCÊ quer escrever um livro? Ficção, provavelmente? Não é ruim procurar conselhos de quem tem experiência no assunto.
O jornal inglês "The Guardian" resolveu pedir a vários escritores uma lista com dez recomendações básicas para quem quiser se aventurar na profissão. Digite "guardian ten rules" no Google e autores como Elmore Leonard, P.D. James, Roddy Doyle, Zadie Smith e Colm Tóibin estarão respondendo à enquete.
Esse gênero de aconselhamento não é novo. Existem pessoas que sempre releem as "Cartas a um Jovem Poeta", de Rainer Maria Rilke, à procura de alguma coisa que tenha passado despercebida na leitura anterior. Mas o livro de Rilke ajuda mais quem quer conhecer Rilke do que quem pretende ser poeta.
Fica daquele livro uma pergunta ameaçadora: você morrerá se tiver de parar de escrever? Convenhamos que faz um mal danado se for levada a sério. Pior, faz com que o pretendente a escritor se leve ainda mais a sério do que é normal para sua situação. O fato de ser verdadeira para Rilke não significa, aliás, que funcione para todo mundo; de Rimbaud a Vinícius de Moraes, muitos poetas desmentem essa espécie de autojuramento soleníssimo.
Os escritores ouvidos pelo "Guardian" vão para o extremo oposto. Contra o romantismo da vocação vital, assumem na maioria uma pose de profissionalismo completo, meio humorístico, meio bogartiano.
"Arranje um contador", diz Hilary Mantel. "Leve um lápis para escrever no avião. Mas, como a ponta pode quebrar, leve dois", explica Margaret Atwood, cuja regra número três é a de que se deve usar preferencialmente papel. Ela também lembra a importância de exercícios contra dor nas costas. "Não tenha filhos", diz Richard Ford. "Escreva", diz Neil Gaiman.
Não troque o verbo "dizer" por "obtemperar", "asseverar" e coisas do gênero, diz Elmore Leonard. Ele é dos mais durões: nada de prefácios e prólogos, nada de advérbios, e nunca inicie um romance descrevendo as condições meteorológicas.
Corte, corte, corte. Jogue no lixo. Não mantenha no texto frases que só você acha bonitas. Não use metáforas. O melhor estilo é o de quem sai de cena, não o de quem fica no meio do caminho. Os primeiros parágrafos de um livro são em geral dispensáveis.
De forma amistosa ou não, esse tipo de "macheza" se repete na maioria dos participantes da enquete. O efeito é desencorajador. De certo modo, é natural que isso aconteça. O escritor de sucesso é procurado por muita gente sem talento, pedindo conselhos e logo aprende a transmitir, de forma velada, a ideia de que quando não se tem talento o melhor é não pedir conselhos, e escrever o mínimo possível. Daí a frequência com que se fala em cortar, evitar adjetivos etc.
Mas há também uma ética, e uma estética, nessa dureza de atitudes. A estética deve muito, ainda, aos ficcionistas americanos de 1920 e 1930. Autores como Hemingway puseram em prática a tese do quanto menos, melhor. Com todo o realismo que isso pressupunha, com toda a justificada desconfiança diante do beletrismo de antigamente, essa austeridade estava relacionada às correntes puristas, abstratas, moderníssimas da arquitetura e das artes plásticas da época.
É difícil, em todo caso, achar que Hemingway teria algo a ensinar a Proust, que nunca pensou em escrever parágrafos curtos e sem advérbios. Talvez os imitadores de Proust sejam piores que os imitadores de Hemingway, mas não há razão para querer mais imitadores de Hemingway hoje em dia, e a isso tende o "machismo estilístico" tão insistentemente valorizado na enquete.
A ética desse tipo de conselhos se deve a outro fenômeno. O escritor contemporâneo quer ser, e frequentemente é, um "animal profissional". Abomina a auto-indulgência e o sentimentalismo de quem se diz inspirado, vocacionado, eleito para a coisa. De fato, seria ridículo expressar tanta pretensão.
Mas dá para intuir, em vários dos autores consultados, um esnobismo em sentido contrário. Fazer-se de desimportante e mostrar desencanto com o papel do escritor tem, certamente, um risco: o de os leitores terminarem achando que você acredita mesmo nisso. E não há motivo para os escritores desejarem ficar mais por baixo do que já estão. Exceto o de dizer, muito vaidosamente, que nem ligam para isso.

coelhofsp@uol.com.br


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