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O Carnaval da verdade está nos anjos de cara suja
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Aqui nos USA, ninguém ligou
para o Carnaval brasileiro.
Uma foto no "Times", coisas
rápidas na TV. Somos um povo
esquisito, todo nu, pulando como malucos, para espanto risonho do mundo "civilizado".
Muito bem. Pois acho o Carnaval nossa marca e nossa
grandeza. Como pode o mundo achar o Carnaval uma loucura, este mundo irracional de
Madeleine Albright contra
Saddam, de bombas "clean"
contra bombas sujas? É melhor
entender o Brasil por meio do
Carnaval do que ver o Carnaval como um desvio da razão.
O Carnaval nos vê. Sua razão
perversa nos ensina mais que
essas "moralidade críticas".
O Carnaval mostra que o
Brasil tem outra forma de "seriedade", mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão.
O Carnaval mostra a matéria
de que somos feitos, por baixo
dessa mímica do "Ocidente"
que o Brasil tenta há quatro
séculos.
Há uma "orientalidade africana" em nossa vida. A África
e os índios nos salvaram, assim
como salvaram os USA. O que
seria da América sem o jazz?
Um país branco-azedo, cheio
de "wasps" tristes.
Nosso Carnaval mostra que o
inconsciente brasileiro está à
flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo o
recalque. Já imaginaram um
Carnaval na Suíça? Talvez o
Carnaval seja uma doença salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa,
por só conhecer a guerra, a velocidade e o mercado cruel.
A "razão perversa" é a razão
do Carnaval. Não a perversão
como "pecado", mas como mímica de uma liberdade, como
a busca de uma civilização
"não civilizada", de um retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.
Rock e samba
O Ocidente tem o rock, sem
dúvida. Mas, em geral, o rock
fala de uma certa luta transgressiva, de uma pretensa revolta social (hoje, bem falsa), e
não da moleza feminina do
Carnaval.
O Carnaval é feminino; o
rock é de homem. O rock é
guerra; o Carnaval é luxo e volúpia. Na razão do Carnaval,
existe uma coisa mais além da
moralidade, há uma santidade
nessa explosão de carne que
não se explica. Em nenhum lugar do mundo vemos isso. Onde existem essas montanhas de
corpos se atirando uns aos outros, com sexo e música?
Há no Brasil o desejo de uma
certa "indianização" como futuro. Não falo de "atraso", mas
do retorno a uma felicidade
primitiva. A sacanagem das
matas profundas é diferente
das surubas calvinistas de Nova York, que inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram na Aids.
O Carnaval não aspira a nenhuma desordem profunda,
como pode parecer ao turista
reprimido. Ele é uma utopia
sexual funcional, como os carros alegóricos que passam na
avenida.
No Carnaval, há o tesão por
uma trepada pré-histórica, definitiva, uma revelação.
O Carnaval quer transformar a cultura em natureza. As
mulheres que flutuam no ar
dos desfiles estão além do desejo real.
Conquistadas, elas seriam
reais. Mas nosso desejo quer
tê-las inatingíveis, metáforas.
No Carnaval, os homens querem virar mulheres. Todos
querem ser tudo: os homens
querem ter seios e fecundidade, e as mulheres querem ser
ágeis e sedutoras, máquinas de
excitar pênis dançantes. Daí, a
importância do travestimento
no Carnaval, que é um paraíso
gay.
O mundo macho tem muito a
aprender com as mulheres no
Carnaval, as filhas das mucamas, das escravas lindas com o
sonho das estrelas de Hollywood. Aliás, os musicais americanos são próximos do Carnaval. Quem inventou as escolas de samba na tela foi o
Busby Berkeley.
Nova orgia mundial
O Carnaval é uma resistência
à "nova ordem mundial", mas
pode também "aperfeiçoá-la".
Um país mesclado de raças e
sacanagem pode ser o antídoto
dionisíaco contra o pragmatismo protestante. Se bem que
precisamos também de um
pouco de calvinismo para organizar nossas orgias.
Dentro do Brasil, não podemos deixar que os velhos canalhas de sempre, os poderosos
há 400 anos, transformem nossa alegria em ingenuidade,
nosso anarquismo em escravidão. E, no mundo global, numa sociedade feita de prósperos informáticos, podemos
contribuir como um bloco de
Calibans sujos, poéticos, loucos
e bailarinos.
Mas, mesmo assim, dói-me
ver a "virtualização" do Carnaval de hoje, no Rio. O "ser"
deu lugar ao "ver". O Carnaval
oficial virou uma festa para
"voyeurs". O Carnaval virou
uma festa para turistas, inclusive para brasileiros, na TV e
nas arquibancadas, turistas de
si mesmos.
Por isso, o grande Carnaval
está muito presente no mundo
dos foliões anônimos. Podemos
ver nas ruas a preciosa origem
do Carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. O Carnaval das ruas está longe do
populismo oficial, que transforma o popular em "kitsch".
Nas ruas, estão os blocos dos
anjos de cara suja, os blocos
das escrotas, os blocos dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre.
Esses molambos e pirados jogam sobre nós a beleza da lama, onde pulam os dançarinos, a lama fecunda que gera
novas descobertas. Os sujos detêm o segredo e a solução de
nossa dor.
Essa produção de significados novos só se dá ali, no meio
dos loucos, os excluídos do
mundo "clean". Só os sujos são
santos. Ali está a surda revolta
contra o trabalho desumano e
sem amor, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a
beleza óbvia do universo do
bom desenho. Pela destruição
dessa beleza "limpa", vemos a
invasão de uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Cervantes,
Rabelais, passando por Goya,
Ensor e tantos outros, desaguando no barroco brasileiro
do caos colorido.
Alguma coisa muito profunda está oculta na loucura desses marginais. Só ali, nas ruas
sujas, estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança da suruba total, de um
casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à
luz um grande bebê mestiço e
gargalhante que ensine ao
mundo que a vida é arte, e a
lógica careta é a morte.
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