São Paulo, terça, 3 de março de 1998

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O Carnaval da verdade está nos anjos de cara suja

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Aqui nos USA, ninguém ligou para o Carnaval brasileiro. Uma foto no "Times", coisas rápidas na TV. Somos um povo esquisito, todo nu, pulando como malucos, para espanto risonho do mundo "civilizado".
Muito bem. Pois acho o Carnaval nossa marca e nossa grandeza. Como pode o mundo achar o Carnaval uma loucura, este mundo irracional de Madeleine Albright contra Saddam, de bombas "clean" contra bombas sujas? É melhor entender o Brasil por meio do Carnaval do que ver o Carnaval como um desvio da razão. O Carnaval nos vê. Sua razão perversa nos ensina mais que essas "moralidade críticas".
O Carnaval mostra que o Brasil tem outra forma de "seriedade", mais alta que a gravidade do mundo anglo-saxão. O Carnaval mostra a matéria de que somos feitos, por baixo dessa mímica do "Ocidente" que o Brasil tenta há quatro séculos.
Há uma "orientalidade africana" em nossa vida. A África e os índios nos salvaram, assim como salvaram os USA. O que seria da América sem o jazz? Um país branco-azedo, cheio de "wasps" tristes.
Nosso Carnaval mostra que o inconsciente brasileiro está à flor da carne. Quanto mais civilizado o país, mais fundo o recalque. Já imaginaram um Carnaval na Suíça? Talvez o Carnaval seja uma doença salvadora, uma epidemia de delírio de que o mundo precisa, por só conhecer a guerra, a velocidade e o mercado cruel.
A "razão perversa" é a razão do Carnaval. Não a perversão como "pecado", mas como mímica de uma liberdade, como a busca de uma civilização "não civilizada", de um retorno a uma animalidade perdida e, no entanto, pulsante.
Rock e samba
O Ocidente tem o rock, sem dúvida. Mas, em geral, o rock fala de uma certa luta transgressiva, de uma pretensa revolta social (hoje, bem falsa), e não da moleza feminina do Carnaval.
O Carnaval é feminino; o rock é de homem. O rock é guerra; o Carnaval é luxo e volúpia. Na razão do Carnaval, existe uma coisa mais além da moralidade, há uma santidade nessa explosão de carne que não se explica. Em nenhum lugar do mundo vemos isso. Onde existem essas montanhas de corpos se atirando uns aos outros, com sexo e música?
Há no Brasil o desejo de uma certa "indianização" como futuro. Não falo de "atraso", mas do retorno a uma felicidade primitiva. A sacanagem das matas profundas é diferente das surubas calvinistas de Nova York, que inventaram o sexo torturado nas boates doentias e acabaram na Aids.
O Carnaval não aspira a nenhuma desordem profunda, como pode parecer ao turista reprimido. Ele é uma utopia sexual funcional, como os carros alegóricos que passam na avenida.
No Carnaval, há o tesão por uma trepada pré-histórica, definitiva, uma revelação.
O Carnaval quer transformar a cultura em natureza. As mulheres que flutuam no ar dos desfiles estão além do desejo real.
Conquistadas, elas seriam reais. Mas nosso desejo quer tê-las inatingíveis, metáforas.
No Carnaval, os homens querem virar mulheres. Todos querem ser tudo: os homens querem ter seios e fecundidade, e as mulheres querem ser ágeis e sedutoras, máquinas de excitar pênis dançantes. Daí, a importância do travestimento no Carnaval, que é um paraíso gay.
O mundo macho tem muito a aprender com as mulheres no Carnaval, as filhas das mucamas, das escravas lindas com o sonho das estrelas de Hollywood. Aliás, os musicais americanos são próximos do Carnaval. Quem inventou as escolas de samba na tela foi o Busby Berkeley.
Nova orgia mundial

O Carnaval é uma resistência à "nova ordem mundial", mas pode também "aperfeiçoá-la". Um país mesclado de raças e sacanagem pode ser o antídoto dionisíaco contra o pragmatismo protestante. Se bem que precisamos também de um pouco de calvinismo para organizar nossas orgias.
Dentro do Brasil, não podemos deixar que os velhos canalhas de sempre, os poderosos há 400 anos, transformem nossa alegria em ingenuidade, nosso anarquismo em escravidão. E, no mundo global, numa sociedade feita de prósperos informáticos, podemos contribuir como um bloco de Calibans sujos, poéticos, loucos e bailarinos.
Mas, mesmo assim, dói-me ver a "virtualização" do Carnaval de hoje, no Rio. O "ser" deu lugar ao "ver". O Carnaval oficial virou uma festa para "voyeurs". O Carnaval virou uma festa para turistas, inclusive para brasileiros, na TV e nas arquibancadas, turistas de si mesmos.
Por isso, o grande Carnaval está muito presente no mundo dos foliões anônimos. Podemos ver nas ruas a preciosa origem do Carnaval profundo. Lá, estão os desesperados, os famintos de amor, os malucos, os excluídos da festa oficial. O Carnaval das ruas está longe do populismo oficial, que transforma o popular em "kitsch".
Nas ruas, estão os blocos dos anjos de cara suja, os blocos das escrotas, os blocos dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada pobre. Esses molambos e pirados jogam sobre nós a beleza da lama, onde pulam os dançarinos, a lama fecunda que gera novas descobertas. Os sujos detêm o segredo e a solução de nossa dor.
Essa produção de significados novos só se dá ali, no meio dos loucos, os excluídos do mundo "clean". Só os sujos são santos. Ali está a surda revolta contra o trabalho desumano e sem amor, o exorcismo da miséria, o prazer de escrachar a beleza óbvia do universo do bom desenho. Pela destruição dessa beleza "limpa", vemos a invasão de uma poesia grotesca que atravessa os séculos desde Brueghel, Bosch, Cervantes, Rabelais, passando por Goya, Ensor e tantos outros, desaguando no barroco brasileiro do caos colorido.
Alguma coisa muito profunda está oculta na loucura desses marginais. Só ali, nas ruas sujas, estão as três raças brasileiras entrelaçadas na esperança da suruba total, de um casamento grupal doido: negros, brancos e índios dando à luz um grande bebê mestiço e gargalhante que ensine ao mundo que a vida é arte, e a lógica careta é a morte.



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