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CONTARDO CALLIGARIS
"Dois Perdidos numa Noite Suja"
Estréia amanhã, no Rio e
em São Paulo, "Dois Perdidos numa Noite Suja", o filme de
José Joffily que se inspira numa
famosa peça de Plínio Marcos.
Paco e Tonho, que, na peça,
eram marginais da periferia paulista, são, no roteiro de Paulo
Halm, dois imigrantes brasileiros
na Nova York de hoje. Tonho
(Roberto Bomtempo) vem de Governador Valadares, vive miseravelmente de bicos e subemprego e
é prisioneiro de uma ficção de sucesso americano, inventada nas
cartas destinadas à mãe. Ele encontra Paco (Débora Falabella),
uma jovem andrógina que se
prostitui e se droga esperando o
dia em que será descoberta e, enfim, brilhará como uma estrela
pop.
Não perca. Os diálogos são fulminantes, os atores são inesquecíveis. Mas não é só isso. O filme é
crucial também por outra razão:
ele desnuda a presença violenta e
parasita, em cada um de nós, de
um monstro de nossa cultura, o
dito "sonho americano".
Vamos com ordem. Desde o começo dos anos 80, 1 milhão (ou
mais) de brasileiros emigraram
para os EUA, ficando, voltando
ou tornando-se pendulares para
sempre. A grandíssima maioria
trabalha duro e se insere, bem ou
mal, na sociedade americana.
Como me disse um policial de
Boston, "os brasileiros são ordeiros". Em suma, o caso de Tonho e
Paco é fora do comum. Mas as
histórias excepcionais são reveladoras.
Em São Paulo, algumas semanas atrás, uma conhecida, dona
de pequena empresa, com formação universitária, me contava das
cartas entusiasmadas que ela recebe de uma amiga que emigrou e
que está agora em Nova Jersey,
contente (segundo as cartas) e
bem de vida. A amiga encontrou
um emprego ótimo: stripteaser de
clube. Minha conhecida, brincando, dizia-se tentada pela aventura: afinal, não seria mal sair do
Brasil e ganhar um dinheiro mais
sério. Voltando a Nova York,
poucos dias depois, esbarrei numa notícia, no "New York Post":
uma stripteaser brasileira fora assassinada em seu apartamento.
Claro, não era a mesma; há várias.
Ora, as stripteasers de Nova Jersey, Tonho e Paco revelam algo
que vale também para os imigrantes "ordeiros": quase todos se
despojam das qualidades que, no
Brasil, determinavam seu lugar
na comunidade. Não penso só em
amores, amizades e laços, mas
nas competências que tornam cada um de nós reconhecível e socialmente significativo. Tonho
mexia com computadores, Paco
sabia cantar, a jovem mulher que
foi para Nova Jersey talvez fosse
psicóloga, outro era torneiro mecânico, outro ainda, sem diploma
nenhum, era camelô e convencia
a freguesia como ninguém. Pois
bem, ao emigrarem, são todos reduzidos a um denominador comum: seu corpo. Não falam a língua direito. Por não terem documentos, só têm acesso aos empregos reservados a quem pode vender apenas sua força ou seus encantos.
Ironia da história: os brasileiros
emigrados de hoje revivem o drama da escravatura. Os africanos,
ao ser arrancados de sua terra,
perderam tudo o que fazia sua
significação social. Deste lado do
Atlântico, o xamã, o guerreiro, o
pastor, o pescador e a princesa
eram apenas corpos nus e mudos.
Valiam pelos braços e, eventualmente, pelo desejo que suscitavam nos compradores.
O tráfico de escravos não existe
mais. Que força rapta os emigrantes brasileiros de hoje? Que
fúria os leva a aceitar serem reduzidos a seus corpos? Não é só a miséria. Uma boa maioria é de pequena classe média; chegam de
avião, como turistas: impossível
para os menos favorecidos. O que
empurra esses emigrantes é o
mesmo sonho que tiraniza a vida
de todos nós.
Paco e Tonho nos lembram de
que um devaneio pode ser tão
brutal quanto as amarras dos navios negreiros ou quanto os roncos dos ventres vazios. Tonho não
consegue decidir-se a voltar para
casa: paga o preço de uma solidão
desesperada, não para ajudar a
mãe (ele não tem dinheiro para
mandar), mas para alimentar a
imagem de sua própria felicidade
americana na mente da mãe. Paco acha que, na América, ela tem
tudo o que quer: está feliz (repete,
talvez para convencer-se) de ficar
com nada e de descer ao horror, à
condição de poder sonhar que,
um dia, ela subirá na ribalta.
Ambos são as vítimas do narcisismo que é o lote comum; sacrificamos muito, se não tudo, para seguir acreditando numa imagem
maravilhosa que conhecemos
bem: é a criança bem-fadada que
nossas mães queriam que fôssemos, é a fábula de nossos triunfos.
Novidade moderna: somos livres para mudar (de status, de
ofício, de país). Mas essa liberdade impõe uma dupla condição: a
insatisfação constante com nosso
quinhão e a convicção de que somos definidos não por nossas habilidades, por nossas relações ou
mesmo por nossa cara, mas pelas
miragens atrás das quais corremos.
Útil nestes dias: os EUA (onde
Tonho quer "fazer a América" e
onde Paco se sente em casa) não
são apenas um país real. Por razões e mal-entendidos históricos,
passaram a encarnar as sinas de
nossa cultura: uma miragem de
futuro e um anseio raivoso de sucesso que estão dentro de todos
nós e que, de lá, de dentro, paradoxalmente, nos libertam e nos
perseguem.
ccalligari@uol.com.br
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