|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CONTARDO CALLIGARIS
O sonho de Martin Luther King
O amor é o agente da modernidade: os sentimentos vencem os preconceitos das tribos
AMANHÃ FARÁ 40 anos, dia por
dia, desde o assassinato de
Martin Luther King, em
Memphis, Tennessee.
Em 1963, cinco anos antes de sua
morte, King contara seu sonho aos
manifestantes da marcha sobre
Washington: ele imaginava um futuro em que "brancos e negros, judeus e gentios, protestantes e católicos", descendentes de escravos e de
donos de escravos, todos viveriam
em harmonia, sentados "à mesa da
irmandade". Nesse futuro, cada um
seria julgado por seus atos e por seu
caráter, não pela cor de sua pele, pela herança de sua etnia ou por sua fé.
King pedia que os EUA e o mundo
moderno se mostrassem à altura de
suas próprias declarações fundadoras: por exemplo, a Constituição dos
EUA.
Ao longo das últimas quatro décadas, muitas coisas mudaram. Um
balanço rápido constataria, sem otimismo excessivo, que o preconceito
e a discriminação das diferenças retrocederam. Foi o efeito de mil lutas,
grandes e pequenas, nos Parlamentos, nas ruas e nas padarias da esquina.
Mas as diferenças, durante a própria luta para não serem discriminadas, acabaram se consolidando e nos
afastando da irmandade com a qual
sonhava King. Em outras palavras,
parecemos nos encaminhar para
um mundo em que cada indivíduo e
cada grupo seriam iguais perante a
lei e respeitados em sua diferença,
mas em que seria perdido o sentimento de constituirmos juntos algum tipo de comunidade. A sociedade futura seria, então, apenas uma
convivência ordeira de diferenças e
distâncias irredutíveis: muito longe
do sonho de King.
Esse sonho reviveu, nestes dias,
no discurso de Barack Obama "A
More Perfect Union" (a "união mais
perfeita", que era o propósito explícito dos signatários da Constituição
dos EUA). Obama é suficientemente
atento às diferenças para se lembrar, por exemplo, de que ser filho
de imigrante africano não é a mesma coisa do que ser descendente de
escravo. Mas, apesar de sua atenção
às diferenças, talvez por ser o fruto
de um amor inter-racial, ele consegue (novidade absoluta) ser um candidato negro, sem ser um candidato
dos negros.
Por isso, muitos americanos talvez vislumbrem nele o símbolo daquela comunidade (não só uma convivência) de diferentes que era o sonho de Martin Luther King.
Não sei se Obama será o candidato
escolhido pelos democratas e ainda
menos se será eleito presidente.
Quase a metade dos americanos se
diz disposta a votar nele; fora dos Estados Unidos, ele é imensamente
popular. Será que estamos prontos
para o sonho de Martin Luther King
logo agora, num momento em que,
pelo mundo afora, diferenças religiosas e culturais travam uma luta
sangrenta?
Alguns dados encorajadores. No
livro "Microtrends" (microtendências, editora Twelve, 2007), de Mark
Penn, há um capítulo sobre famílias
inter-raciais, que resume uma série
de pesquisas recentes.
Em 1970, nos EUA, havia aproximadamente 300 mil casais inter-raciais, ou seja, 0,3% dos casamentos.
Em 2000, já eram dez vezes mais,
acima de 3 milhões, 5,4% de todos os
casamentos. A maioria dos casamentos inter-raciais incluem um indivíduo hispânico (casado com negro ou branco). Mas o tipo de casal
inter-racial mais freqüente (14%) é o
de um homem branco com uma mulher asiática, seguido pelo casal de
um homem negro com uma mulher
branca (8%).
As adoções inter-raciais triplicaram. Em particular, nos EUA, o número de crianças confiadas pelos
serviços sociais à custódia temporária de pais de uma outra etnia passou de 14% a 26%. É um dado significativo considerando que, dos anos
70 aos 90, as adoções inter-raciais
eram acusadas de perpetrar um "genocídio cultural" assimilando "à força" os rebentos de outra etnia.
Qual é a relevância dessa "brasileirização" dos EUA? Pois é, Romeu e
Julieta são os protótipos do herói
moderno. O amor é o grande agente
da modernidade: a vitória do indivíduo contra o peso das tradições é antes de mais nada vitória dos sentimentos, ou seja, de paixões singulares que atropelam os mandatos e os
preconceitos das tribos.
Para quem ama, o furor das lutas
entre religiões, culturas e tribos que
se opõem a seus sentimentos é apenas um resto do passado.
PS: Para ler o discurso de King:
http://usinfo.state.gov/infousa/
government/overview/38.html.
Para escutar o discurso de Barack
Obama: br.youtube.com/watch?v=pWe7wTVbLUU.
ccalligari@uol.com.br
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Artes plásticas: Litografia de Miró é roubada na Alemanha Índice
|