São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2000


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HISTÓRIA

Inquisição traz cultura popular à tona

SYLVIA COLOMBO
Editora de Especiais

Nada de fogueiras. O historiador português Francisco Bethencourt, autor de "História das Inquisições - Portugal, Espanha e Itália", preferiu abrir mão da análise detalhada de julgamentos ocorridos durante o período. Para ele, o importante neste momento para a historiografia é abordar a Inquisição como instrumento para o estudo da cultura e da religião popular.
Por isso, Bethencourt quis focar sua atenção no organograma e no funcionamento da Inquisição, estudando o significado de seus ritos, esmiuçando os modelos de ação nas esferas locais de cada país e os sistemas de representação utilizados, em vez de traçar histórias pessoais das vítimas.
O livro aborda o amplo período em que a Inquisição atuou, de 1478, quando foi instituída em Sevilha (Espanha), até seus momentos finais, em 1800 (Itália), 1821 (Portugal) e 1834 (Espanha).
Leia trechos da entrevista com o historiador, que veio ao país para lançar seu livro, hoje no shopping Villa-Lobos, e participar da Bienal do Livro.

Folha - Como o estudo da Inquisição pode ser útil para a análise da cultura popular?
Francisco Bethencourt -
Os processos da Inquisição permitem-nos ter acesso a um universo de culturas e formas de religiosidade populares que mantinham a sua matriz pré-cristã ou tinham formas de expressão sincréticas.
São fontes únicas, pois essas manifestações culturais situavam-se normalmente num universo de expressão oral. Os processos, como documentos judiciais destinados a produzir provas de culpa, devem ser decodificados. No Brasil, saliento os excelentes trabalhos de Ronaldo Vainfas e Laura de Mello e Souza.

Folha - Seu livro mostra que houve especificidades e que existiram várias inquisições. Então, por que a imagem da Inquisição na cultura ocidental é a de uma instituição homogênea?
Bethencourt -
A Inquisição adaptou-se a diferentes contextos e adquiriu diferentes configurações administrativas e sociais. Essa capacidade de adaptação é responsável pela sua longevidade. Mas manteve um traço comum: sua condição de tribunal da fé, criado pelo papa com poderes para perseguir as heresias, crenças e comportamentos "desviados" em relação à ortodoxia romana.
Daí a tensão entre as diversas formas de organização e inserção social, por um lado, e o caráter centralizado da definição de heresia, por outro. Os manuais dos inquisidores, com efeito, constituem um corpo homogêneo com experiências acumuladas, segundo a idéia de que não existem novas heresias, apenas novas faces para velhos "erros".

Folha - Qual é sua opinião sobre as interpretações literárias da Inquisição?
Bethencourt -
A utilização da Inquisição como tema literário foi inaugurada por Voltaire com o romance "Cândido". Desde o século 16 existiam panfletos protestantes e manuscritos hebraicos que denunciavam as práticas inquisitoriais. A obra de Charles Dellon sobre a Inquisição de Goa, publicada nos anos de 1680, teve um impacto enorme. Sua influência é evidente em Montesquieu.
O romance de Voltaire representa uma virada radical, pois a Inquisição passa a ser considerada como o símbolo de uma época ultrapassada de intolerância religiosa. As revoluções liberais do século 19 vão selar essa transformação do sistema de valores, anunciada pela literatura.

Folha - O sr. relata como o conflito com outras autoridades foi tornando os inquisidores cada vez mais senhores apenas das ações que encenavam. Como a sociedade recebia isso?
Bethencourt -
As instituições eclesiásticas estiveram sempre envolvidas em conflitos de poder seculares. A Inquisição, dado o seu caráter repressivo, necessitava de algum consenso social e, sobretudo, de apoio político.
Daí a nomeação de membros civis da Inquisição, os chamados "familiares", que se beneficiavam de isenção de impostos e de outros privilégios, como o porte de armas. Tratava-se de uma forma de a Inquisição conseguir o necessário apoio das elites sociais.
Mas é preciso não esquecer que as detenções ordenadas pela Inquisição tinham de obter o consentimento do poder civil, tal como as sentenças de excomunhão só podiam conduzir a execuções se aceitas pelos tribunais civis.
É essa articulação entre poder civil e inquisitorial que é quebrada com as revoluções liberais.

Folha - O que o sr. acha do pedido de perdão do papa João Paulo 2º (o papa pediu perdão, em março último, pelos pecados e abusos cometidos sob a tutela ou com o beneplácito da Igreja Católica)?
Bethencourt -
Penso que é o ponto final no velho debate sobre o dogma da infalibilidade do papa e a assunção do caráter humano da Igreja Católica. É uma atitude sã e exemplar, numa época em que se verifica um recrudescimento, em outras regiões, do envolvimento de igrejas na ação política direta, surgindo novas formas de totalitarismo religioso.
Essa nova atitude da Igreja Católica já conduziu à abertura, em 1998, dos arquivos da Inquisição no Vaticano, o que prevê uma maior transparência na investigação histórica sobre um passado que modelou, em grande medida, a história do Ocidente.
Em regiões com assimetrias sociais enormes, como a América Latina, exige-se um empenho humanitário acrescido de diversas igrejas, nomeadamente da católica, por sua influência majoritária.


Livro: História das Inquisições - Portugal, Espanha e Itália - Séculos 15 a 19 Editora: Companhia das Letras
Preço: R$ 39 (536 págs.)
Lançamento: hoje, às 18h
Onde: livraria Cultura - shopping Villa-Lobos (av. das Nações Unidas, 4.777, tel. 0/xx/11/3024-3599)


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