São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2001

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MEMÓRIA

Richard Morse era o brasilianista do espelho

GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por intermédio de Matthew Shirts, amigo americano em comum, cruzei algumas vezes com Richard Morse em São Paulo, cidade que ele adorava. Sempre a nossa conversa girava em torno de Gilberto Freyre, sobre quem escrevi "O Xará de Apipucos".
Richard Morse gostava desse meu livro, mas ele não se comoveu com Luís da Câmara Cascudo, o que para mim queria dizer a não-sintonia do brasilianismo com o folclore brasileiro, a despeito de sua aguda visão weberiana sobre o desencanto do mundo.
Richard Morse nasceu em Nova Jersey e morreu no Haiti no último dia 17, casado com uma mulher negra haitiana.
Seu ensaio "O Espelho de Próspero" é um mergulho no sentimento de inferioridade do ibero-americano. O pêndulo da comparação a espelhar o ângulo protestante e o latino-católico, de que resultou a fama de Richard Morse como intelectual malucão, porque apontava que o lance civilizatório estava aqui no Sul, e não no Norte, embora tivesse sido escolhido para dirigir a Fundação Ford, instituição norte-americana que apadrinhara o Cebrap pré-tucano nos finais dos anos 60.
Minha impressão é a de que em algum momento Morse entrou em pane psíquica com a afortunada e chata sociedade norte-americana. Ele tomou-se de uma inegável simpatia pelo mágico encantamento arcaico do Sul atrasado economicamente, sem aceitar no entanto a tese de que somos o eclipse da racionalidade ocidental. O miolo mole do mundo.
O crítico José Guilherme Merquior detectou-lhe um fastio típico de quem fala a partir de uma sociedade abonada, enfim, um americano afluente e entediado.
Para Richard Morse, as elites norte-americanas gozam de conforto e benefícios, mas não de serenidade. O Próspero americano é um fissurado. Segundo Ortega y Gasset, o colonizador vem para a colônia a fim de rejuvenescer.
Embora nunca tenha fixado residência no Brasil, Richard Morse manifestava mal-estar em relação à cultura anglo-americana. Ele não tolerava a mulher excessivamente autodisciplinada. A manipulação protestante do afeto não compensaria a riqueza de mercadorias. Tomando o partido do cubano José Martí, Richard Morse acusou os Estados Unidos de fragmentarem a compreensão da "Nuestra America", mas o desejo de Morse era conectar as duas Américas: a do Sul e a do Norte.
Richard Morse denunciou a burrice ibero-americana: a de se achar obsoleta.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de "O Cabaré das Crianças", entre outros.



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