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MEMÓRIA
Richard Morse era o brasilianista do espelho
GILBERTO FELISBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Por intermédio de Matthew Shirts, amigo americano em comum, cruzei algumas
vezes com Richard Morse em São
Paulo, cidade que ele adorava.
Sempre a nossa conversa girava
em torno de Gilberto Freyre, sobre quem escrevi "O Xará de Apipucos".
Richard Morse gostava desse
meu livro, mas ele não se comoveu com Luís da Câmara Cascudo, o que para mim queria dizer a
não-sintonia do brasilianismo
com o folclore brasileiro, a despeito de sua aguda visão weberiana
sobre o desencanto do mundo.
Richard Morse nasceu em Nova
Jersey e morreu no Haiti no último dia 17, casado com uma mulher negra haitiana.
Seu ensaio "O Espelho de Próspero" é um mergulho no sentimento de inferioridade do ibero-americano. O pêndulo da comparação a espelhar o ângulo protestante e o latino-católico, de que
resultou a fama de Richard Morse
como intelectual malucão, porque apontava que o lance civilizatório estava aqui no Sul, e não no
Norte, embora tivesse sido escolhido para dirigir a Fundação
Ford, instituição norte-americana
que apadrinhara o Cebrap pré-tucano nos finais dos anos 60.
Minha impressão é a de que em
algum momento Morse entrou
em pane psíquica com a afortunada e chata sociedade norte-americana. Ele tomou-se de uma inegável simpatia pelo mágico encantamento arcaico do Sul atrasado
economicamente, sem aceitar no
entanto a tese de que somos o
eclipse da racionalidade ocidental. O miolo mole do mundo.
O crítico José Guilherme Merquior detectou-lhe um fastio típico de quem fala a partir de uma
sociedade abonada, enfim, um
americano afluente e entediado.
Para Richard Morse, as elites
norte-americanas gozam de conforto e benefícios, mas não de serenidade. O Próspero americano
é um fissurado. Segundo Ortega y
Gasset, o colonizador vem para a
colônia a fim de rejuvenescer.
Embora nunca tenha fixado residência no Brasil, Richard Morse
manifestava mal-estar em relação
à cultura anglo-americana. Ele
não tolerava a mulher excessivamente autodisciplinada. A manipulação protestante do afeto não
compensaria a riqueza de mercadorias. Tomando o partido do cubano José Martí, Richard Morse
acusou os Estados Unidos de
fragmentarem a compreensão da
"Nuestra America", mas o desejo
de Morse era conectar as duas
Américas: a do Sul e a do Norte.
Richard Morse denunciou a
burrice ibero-americana: a de se
achar obsoleta.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é
professor da Universidade Federal de
Juiz de Fora e autor de "O Cabaré das
Crianças", entre outros.
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