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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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RODAPÉ

O hedonismo libertário de Albert Camus

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Este livro transcorre no breve espaço de uma viagem final." Assim começa aquele que é seguramente o melhor trabalho sobre Albert Camus (1913-1960) já publicado no Brasil. Biografia que se lê como um romance, pequena obra-prima da prosa ensaística, "Albert Camus - A Libertinagem do Sol", de Horacio González, foi escrito nos anos 80, quando esse crítico e sociólogo argentino morava em São Paulo, e seu lançamento faz parte da reedição da coleção "Encanto Radical" pela editora Brasiliense.
A viagem mencionada no início diz respeito à própria estrutura do livro, que alterna dois tempos narrativos: há uma ação presente, que descreve o trajeto que Albert Camus fez a bordo do carro do editor Michel Gallimard no dia 4 de janeiro de 1960 e que culminaria no acidente que os matou; e há um relato em "flashback", que recapitula toda a vida do escritor desde sua infância na Argélia até a consagração com o Nobel de literatura, em 1957.
Essa opção narrativa não obedece apenas a um desejo de imprimir ao livro um ritmo cinematográfico. Existe também uma razão mais profunda. A morte inesperada de Camus acabou deixando soltos alguns fios que talvez nunca pudessem ser reatados. Há em sua trajetória uma alternância de temas e valores que nunca chegam a uma síntese. Por isso, a opção de González de colocar o desastre de automóvel como epicentro de sua análise acaba realçando o modo como essa irresolução perpassa a obra do escritor:
"A imaginação sempre se agita com uma morte súbita. Ela é o que podia não ter acontecido. Mas é também o que aparece com a irretocável gratuidade do repentino. Tudo é assim na vida de Camus. Nela não há processos. Há o brilho severo das permanências. O modo cortante com que a morte se apresenta é de uma fatalidade irreiterável. (...) O mundo não apresenta sínteses entre contrários, mas negações trágicas. Sucessão de acasos, ele condena a consciência ética ou hedônica a vagar intranquila em meio a batalhas cuja maior importância é saber que vão ser perdidas".
Essa passagem é prodigiosa, pois condensa as oscilações daquilo que González chama de "arco camusiano" e que será analisado a cada capítulo de "Albert Camus - A Libertinagem do Sol". Estão aí o hedonismo mediterrâneo (celebrado nos ensaios de "Núpcias" e "O Avesso e o Direito"), a luz ofuscante das praias argelinas (que conduz Meursault ao assassinato em "O Estrangeiro"), a vivência trágica de nosso absurdo destino de morte ("O Mito de Sísifo") e a ética que brota da cumplicidade coletiva diante do absurdo dos processos históricos (tal como representada no romance "A Peste" e no ensaio "O Homem Revoltado").
O livro não é uma biografia em sentido convencional, não tem aquela quantidade exaustiva de informações que encontramos, por exemplo, em "Albert Camus -°Uma Vida", de Olivier Todd (Record). Embora não deixe de citar os fatos mais relevantes da vida do escritor, González prefere fazer um registro quase lírico das primeiras leituras de Camus, da atmosfera multiétnica da Argélia colonial, das amizades com professores que marcaram sua obra (Louis Germain, Jean Grenier), dos dilaceramentos causados pela ruptura com Sartre, da torturante hesitação de Camus na hora de tomar partido na guerra de independência de seu país natal.
Numa obra em que um livro completa o outro, em que cada ensaio desenvolve em direção diferente um tema que já havia aparecido num romance ou numa peça teatral, é natural que os leitores sejam obrigados a escolher "um" Camus dentre os muitos possíveis.
Críticos como Dominick LaCapra e Shoshana Felman, por exemplo, vêm enriquecendo sua bibliografia com análises que incluem os livros camusianos no âmbito da literatura pós-Auschwitz, mobilizando noções como "trauma" e "testemunho" para interpretar ficções como "A Peste" e "A Queda". O Camus do argentino Horacio González, porém, conserva aquele traço de "castelhaneria", de altivez moral, fatalismo mediterrâneo e individualismo libertário que fazem de Camus um trágico no coração da modernidade.


Albert Camus - A Libertinagem do Sol
    
Autor: Horacio González
Editora: Brasiliense
Quanto: R$ 12,80 (128 págs.)



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