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RODAPÉ
O hedonismo libertário de Albert Camus
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Este livro transcorre no
breve espaço de uma viagem final." Assim começa aquele
que é seguramente o melhor trabalho sobre Albert Camus (1913-1960) já publicado no Brasil. Biografia que se lê como um romance, pequena obra-prima da prosa
ensaística, "Albert Camus - A Libertinagem do Sol", de Horacio
González, foi escrito nos anos 80,
quando esse crítico e sociólogo
argentino morava em São Paulo, e
seu lançamento faz parte da reedição da coleção "Encanto Radical"
pela editora Brasiliense.
A viagem mencionada no início
diz respeito à própria estrutura do
livro, que alterna dois tempos
narrativos: há uma ação presente,
que descreve o trajeto que Albert
Camus fez a bordo do carro do
editor Michel Gallimard no dia 4
de janeiro de 1960 e que culminaria no acidente que os matou; e há
um relato em "flashback", que recapitula toda a vida do escritor
desde sua infância na Argélia até a
consagração com o Nobel de literatura, em 1957.
Essa opção narrativa não obedece apenas a um desejo de imprimir ao livro um ritmo cinematográfico. Existe também uma razão mais profunda. A morte inesperada de Camus acabou deixando soltos alguns fios que talvez
nunca pudessem ser reatados. Há
em sua trajetória uma alternância
de temas e valores que nunca chegam a uma síntese. Por isso, a opção de González de colocar o desastre de automóvel como epicentro de sua análise acaba realçando
o modo como essa irresolução
perpassa a obra do escritor:
"A imaginação sempre se agita
com uma morte súbita. Ela é o
que podia não ter acontecido.
Mas é também o que aparece com
a irretocável gratuidade do repentino. Tudo é assim na vida de Camus. Nela não há processos. Há o
brilho severo das permanências.
O modo cortante com que a morte se apresenta é de uma fatalidade irreiterável. (...) O mundo não
apresenta sínteses entre contrários, mas negações trágicas. Sucessão de acasos, ele condena a
consciência ética ou hedônica a
vagar intranquila em meio a batalhas cuja maior importância é saber que vão ser perdidas".
Essa passagem é prodigiosa,
pois condensa as oscilações daquilo que González chama de "arco camusiano" e que será analisado a cada capítulo de "Albert Camus - A Libertinagem do Sol". Estão aí o hedonismo mediterrâneo
(celebrado nos ensaios de "Núpcias" e "O Avesso e o Direito"), a
luz ofuscante das praias argelinas
(que conduz Meursault ao assassinato em "O Estrangeiro"), a vivência trágica de nosso absurdo
destino de morte ("O Mito de Sísifo") e a ética que brota da cumplicidade coletiva diante do absurdo
dos processos históricos (tal como representada no romance "A
Peste" e no ensaio "O Homem Revoltado").
O livro não é uma biografia em
sentido convencional, não tem
aquela quantidade exaustiva de
informações que encontramos,
por exemplo, em "Albert Camus
-°Uma Vida", de Olivier Todd
(Record). Embora não deixe de
citar os fatos mais relevantes da
vida do escritor, González prefere
fazer um registro quase lírico das
primeiras leituras de Camus, da
atmosfera multiétnica da Argélia
colonial, das amizades com professores que marcaram sua obra
(Louis Germain, Jean Grenier),
dos dilaceramentos causados pela
ruptura com Sartre, da torturante
hesitação de Camus na hora de tomar partido na guerra de independência de seu país natal.
Numa obra em que um livro
completa o outro, em que cada
ensaio desenvolve em direção diferente um tema que já havia aparecido num romance ou numa
peça teatral, é natural que os leitores sejam obrigados a escolher
"um" Camus dentre os muitos
possíveis.
Críticos como Dominick LaCapra e Shoshana Felman, por
exemplo, vêm enriquecendo sua
bibliografia com análises que incluem os livros camusianos no
âmbito da literatura pós-Auschwitz, mobilizando noções como
"trauma" e "testemunho" para
interpretar ficções como "A Peste" e "A Queda". O Camus do argentino Horacio González, porém, conserva aquele traço de
"castelhaneria", de altivez moral,
fatalismo mediterrâneo e individualismo libertário que fazem de
Camus um trágico no coração da
modernidade.
Albert Camus - A Libertinagem
do Sol
Autor: Horacio González
Editora: Brasiliense
Quanto: R$ 12,80 (128 págs.)
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