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CRÍTICA
Com "Flush", Virginia Woolf presta sua homenagem ao romantismo
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Qual foi o maior sucesso comercial da carreira de Virginia Woolf (1882-1941)? Engana-se
quem pensa em "Orlando", história do herói de dois sexos inspirado em Vita Sackville-West, ou
mesmo em "Mrs. Dalloway", mote de "As Horas" -tanto o livro
quanto o filme.
O maior best-seller da escritora
inglesa é "Flush: Memórias de um
Cão", hoje considerado periférico
em sua trajetória artística.
Depois da publicação de seus
grandes romances e, conta-se,
exausta após ter criado o experimentalmente ambicioso "As Ondas", a autora retomou uma linha
narrativa mais tradicional. Lançado em 1933, "Flush" tornou-se
um êxito de público e de crítica
nos dois lados do Atlântico. A
renda de copyright lhe permitiu
oferecer um carro novo à irmã, a
pintora Vanessa Bell. "Sugiro que
você e Duncan me deixem dar-lhes isto como presente de aniversário. Estou muito melhor do que
esperava, graças a "Flush'", disse.
Flush não é um cão qualquer.
Mesmo antes de ser retratado por
Woolf, já fazia parte da nobre linhagem de animais literários, que
remonta a Argos, cão de Odisseu.
Flush pertenceu à poeta inglesa
Elizabeth Barrett, posteriormente
Browning. A esse cocker spaniel
dourado, Barrett dedicou dois
poemas. A ele, a poeta ainda deve
os trechos mais realistas de "Aurora Leigh", seu grande romance
em versos.
Na década de 40 do século 19,
bairros aristocráticos como Mayfair desfrutavam a incômoda proximidade de cortiços e maltas de
criminosos. Bastava uma ligeira
distração das senhoras para que
seus totós fossem sequestrados
por esses vizinhos. Foi o que ocorreu com Flush, não apenas uma,
mas três vezes. Numa das ocasiões, Barrett se viu obrigada a
meter-se num cupê para negociar
o resgate com os malfeitores.
Seria como se, hoje, uma socialite carioca aparecesse num Audi
para palestrar com o chefão do
tráfico no morro do Borel. Até então Barrett nunca pusera os pés
num bairro miserável. Ali, num
único cômodo, construído a cavaleiro de estábulos, viviam até três
famílias. O tifo grassava. Dessa experiência nasceu o cortiço londrino que a autora forjou em "Aurora Leigh".
Woolf, por seu turno, narra o
episódio do roubo de Flush, como
vários outros da vida da escritora.
Elizabeth Barrett já era famosa
quando conheceu o poeta Robert
Browning. Tinha 40 anos e vivia
reclusa, sob o jugo do pai tirânico.
Escreveu sonetos ao amado. Disse
para o pai que se tratava de uma
tradução sua para versos de Luís
de Camões. O pai engoliu a lorota,
e os poemas, talvez os melhores
de sua lavra, ganharam o título de
"Sonetos Portugueses". O casal
foi depois obrigado a fugir para a
Itália. A originalidade da narrativa de Virginia Woolf residiria em
mostrar esses eventos pela ótica
de Flush.
A crítica atual tem razão apenas
em parte quando desmerece
"Flush", descrito por Woolf como
"uma brincadeira", diante das outras obras da romancista. Visto
em linha evolutiva, de fato parece
um retrocesso aos moldes tradicionais da ficção do século 19. O
ponto de vista de Flush também
nem sempre funciona, e a autora
às vezes se vê obrigada a empregar outros focos para fornecer ao
quadro um ângulo de visão mais
ampliado.
Mas o romance tem aspectos
positivos. Um deles está no quadro satírico que a autora traça da
sociedade inglesa, coisa incomum
em sua prosa. São deleitosos os
petardos dirigidos à obsessão britânica com a ancestralidade ilustre e à mania ocultista. Lorde
Lytton, por exemplo, costumava
surgir diante das visitas de robe
puído, fitando-as com olhos esgazeados, pois acreditava ter adquirido o dom da invisibilidade.
Na sua tentativa de plasmar a
experiência do cão, Woolf também faz magníficas descrições
dos odores (bem antes, portanto,
de "O Perfume", de Patrick Süskind): "O nariz humano é não-existente. Os maiores poetas do
mundo não sentiram o cheiro de
nada além de rosas de um lado e
de esterco de outro. As infinitas
gradações que existem entre as
duas substâncias não foram registradas. Ainda assim, era no mundo dos cheiros que Flush vivia a
maior parte do tempo".
No limite, está a questão de como exprimir o insubstancial por
meio de palavras. Mas será que
elas dizem tudo ou porventura
"destroem os símbolos que existem" além de seu alcance? Sem o
entendimento linguístico, forma-se entre dona e animal um "vazio
espanto". Para transpô-lo, o cão
oferece seu amor incondicional, e
a poeta, seus versos. "Este cão
apenas, guarda-me, /Sabendo que
quando finda a luz /O amor continua a brilhar", canta Barrett. Com
"Flush", Virginia Woolf presta
sua homenagem ao romantismo.
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