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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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CRÍTICA

Com "Flush", Virginia Woolf presta sua homenagem ao romantismo

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Qual foi o maior sucesso comercial da carreira de Virginia Woolf (1882-1941)? Engana-se quem pensa em "Orlando", história do herói de dois sexos inspirado em Vita Sackville-West, ou mesmo em "Mrs. Dalloway", mote de "As Horas" -tanto o livro quanto o filme.
O maior best-seller da escritora inglesa é "Flush: Memórias de um Cão", hoje considerado periférico em sua trajetória artística.
Depois da publicação de seus grandes romances e, conta-se, exausta após ter criado o experimentalmente ambicioso "As Ondas", a autora retomou uma linha narrativa mais tradicional. Lançado em 1933, "Flush" tornou-se um êxito de público e de crítica nos dois lados do Atlântico. A renda de copyright lhe permitiu oferecer um carro novo à irmã, a pintora Vanessa Bell. "Sugiro que você e Duncan me deixem dar-lhes isto como presente de aniversário. Estou muito melhor do que esperava, graças a "Flush'", disse.
Flush não é um cão qualquer. Mesmo antes de ser retratado por Woolf, já fazia parte da nobre linhagem de animais literários, que remonta a Argos, cão de Odisseu. Flush pertenceu à poeta inglesa Elizabeth Barrett, posteriormente Browning. A esse cocker spaniel dourado, Barrett dedicou dois poemas. A ele, a poeta ainda deve os trechos mais realistas de "Aurora Leigh", seu grande romance em versos.
Na década de 40 do século 19, bairros aristocráticos como Mayfair desfrutavam a incômoda proximidade de cortiços e maltas de criminosos. Bastava uma ligeira distração das senhoras para que seus totós fossem sequestrados por esses vizinhos. Foi o que ocorreu com Flush, não apenas uma, mas três vezes. Numa das ocasiões, Barrett se viu obrigada a meter-se num cupê para negociar o resgate com os malfeitores.
Seria como se, hoje, uma socialite carioca aparecesse num Audi para palestrar com o chefão do tráfico no morro do Borel. Até então Barrett nunca pusera os pés num bairro miserável. Ali, num único cômodo, construído a cavaleiro de estábulos, viviam até três famílias. O tifo grassava. Dessa experiência nasceu o cortiço londrino que a autora forjou em "Aurora Leigh".
Woolf, por seu turno, narra o episódio do roubo de Flush, como vários outros da vida da escritora. Elizabeth Barrett já era famosa quando conheceu o poeta Robert Browning. Tinha 40 anos e vivia reclusa, sob o jugo do pai tirânico. Escreveu sonetos ao amado. Disse para o pai que se tratava de uma tradução sua para versos de Luís de Camões. O pai engoliu a lorota, e os poemas, talvez os melhores de sua lavra, ganharam o título de "Sonetos Portugueses". O casal foi depois obrigado a fugir para a Itália. A originalidade da narrativa de Virginia Woolf residiria em mostrar esses eventos pela ótica de Flush.
A crítica atual tem razão apenas em parte quando desmerece "Flush", descrito por Woolf como "uma brincadeira", diante das outras obras da romancista. Visto em linha evolutiva, de fato parece um retrocesso aos moldes tradicionais da ficção do século 19. O ponto de vista de Flush também nem sempre funciona, e a autora às vezes se vê obrigada a empregar outros focos para fornecer ao quadro um ângulo de visão mais ampliado.
Mas o romance tem aspectos positivos. Um deles está no quadro satírico que a autora traça da sociedade inglesa, coisa incomum em sua prosa. São deleitosos os petardos dirigidos à obsessão britânica com a ancestralidade ilustre e à mania ocultista. Lorde Lytton, por exemplo, costumava surgir diante das visitas de robe puído, fitando-as com olhos esgazeados, pois acreditava ter adquirido o dom da invisibilidade.
Na sua tentativa de plasmar a experiência do cão, Woolf também faz magníficas descrições dos odores (bem antes, portanto, de "O Perfume", de Patrick Süskind): "O nariz humano é não-existente. Os maiores poetas do mundo não sentiram o cheiro de nada além de rosas de um lado e de esterco de outro. As infinitas gradações que existem entre as duas substâncias não foram registradas. Ainda assim, era no mundo dos cheiros que Flush vivia a maior parte do tempo".
No limite, está a questão de como exprimir o insubstancial por meio de palavras. Mas será que elas dizem tudo ou porventura "destroem os símbolos que existem" além de seu alcance? Sem o entendimento linguístico, forma-se entre dona e animal um "vazio espanto". Para transpô-lo, o cão oferece seu amor incondicional, e a poeta, seus versos. "Este cão apenas, guarda-me, /Sabendo que quando finda a luz /O amor continua a brilhar", canta Barrett. Com "Flush", Virginia Woolf presta sua homenagem ao romantismo.


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