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NELSON ASCHER
Antes tarde
Anteontem , sábado, dez
países ingressaram na
União Européia, que já contava
com 15 membros. Dois, Malta e
Chipre, são ilhas mediterrâneas,
enquanto os outros oito pertenceram ao bloco soviético. Três deles,
Letônia, Estônia e Lituânia, haviam sido parte integrante da
URSS. Os cinco restantes, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Polônia e Eslovênia, participam do que, antes da Segunda
Guerra, chamava-se Europa Central. Todos estes nasceram ou renasceram como nações independentes da dissolução, no final da
Primeira Guerra, da monarquia
Austro-Húngara e, especificamente no caso polonês, também
dos impérios russo e alemão.
O conceito, mais cultural e histórico do que propriamente geográfico, de Europa Central fora
soterrado pela conflagração de
1939-45, que dividira o continente
em duas metades distintas e rebatizara os países em questão de Europa do Leste. Suas afinidades e
semelhanças sobreviveram, contudo, a tal redefinição geopolítica, de modo que suas populações
continuaram se sentindo mais
atraídas pelo Ocidente do que pela Rússia ou pelos sucessores do
Império Otomano. Legados essenciais da monarquia dos Habsburgos, como o sistema educacional, seguiram moldando o caráter da região.
O que acaba de ocorrer é, portanto, uma espécie de reunificação oficial dos antigos domínios
da cristandade latina, ou seja, das
terras católicas e protestantes,
pois os países que ainda não se
encontram na UE são majoritariamente ortodoxos ou muçulmanos. As principais exceções a essa
regra são a Grécia ortodoxa (dentro) e a Croácia católica (fora). Se
outras nações ortodoxas, como a
Romênia, Bulgária e Sérvia, serão
provavelmente aceitas num futuro não muito longínquo, a incorporação da Turquia islâmica é
mais duvidosa.
O processo que culminou neste
fim de semana se tornou possível
graças à queda, há 15 anos, do
Muro de Berlim. Reduzidos à pobreza por meio século de desorganização soviética, esses oito novos
membros aguardaram pacientemente que os primos ricos os acolhessem em seu clube exclusivo,
implementando uma infinidade
de regras que lhes foram impostas
como pré-condição para tanto. O
que conta, porém, é que, em uma
década e meia de vida independente, cada qual se revelou uma
democracia estável, algo que o
conflito balcânico não permitia
tomar como óbvio.
Tampouco parece tão óbvio
agora como em 1989 que o ingresso lhes traga apenas vantagens.
Se, há 15 anos, a Europa Ocidental estava em seu ápice econômico, desde então o quadro mudou.
O equilíbrio delicado entre o Estado e a iniciativa privada se
rompeu em favor do primeiro,
acarretando o enraizamento da
estagnação e do desemprego. A
metade rica do continente se mostrou, além disso, avessa a reformas necessárias, o peso de uma
burocracia transnacional cresceu
substancialmente e a política exterior, em particular a relação
com os EUA, converteu-se num
autêntico pomo da discórdia,
contrapondo uns aos outros governos antes capazes de conviverem em relativa harmonia.
Não é segredo que a idéia original da UE consistia na combinação da locomotiva alemã com o
modelo político francês dirigindo
um número crescente de sócios
minoritários. A questão se resume
em saber se, com a locomotiva cada vez mais lenta, os novos membros acatarão sem reclamar o
ônus de uma administração supranacional que talvez lhes traga
à memória ecos do sistema do
qual há pouco se livraram. Tudo
indica que não, porque, recém-saídos de um despotismo pretensamente internacionalista, eles
sem dúvida se apegarão a uma
autonomia que muitos europeus
ocidentais julgam obsoleta.
A Hungria ilustra bem os problemas e paradoxos envolvidos
nesta situação. Importante reino
medieval que era, ela perdeu, a
partir do século 16, sua independência para os Otomanos e Habsburgos. A revolução de 1848 assegurou-lhe certos direitos na Monarquia Dual, mas, quando se
tornou independente em 1918/19,
foi ao custo de perder 2/3 do território e metade da população para
os vizinhos. Sua independência só
durou de fato duas décadas, diluindo-se então na órbita alemã
e, em seguida, na comunista contra a qual, aliás, o país se revoltou
sem sucesso em 1956.
Hoje a terra dos magiares não
somente desfruta de uma autonomia pela qual esperou séculos como retomou o espírito de iniciativa sufocado durante o inverno
coletivista. Se há uma coisa que os
húngaros não desejam é delegar
mais poder do que o estritamente
necessário a uma burocracia distante. Nem está entre seus interesses aderir a uma ética laborófoba
e conformista e, como se pode inferir do período posterior à queda
do Muro, reformas não os atemorizam.
O ingresso da Hungria na
União Européia é a correção de
uma injustiça histórica que decerto lhe trará benefícios, embora
não tantos como trouxe à Espanha ou Portugal. Mas, ao contrário do que se pensa, não se tratará
de benefícios unidirecionais. A
Europa unificada não precisa dos
novos membros menos do que estes dela, e isto por várias razões
entre as quais vale a pena destacar tanto a coragem de correr riscos quanto a lembrança recente
da opressão e conseqüente apego
pela autonomia. Poloneses e tchecos, húngaros e lituanos tiveram
a oportunidade de internalizar
uma desconfiança saudável em
relação ao Estado e de desenvolver a capacidade de ler nas entrelinhas dos discursos oficiais as
ameaças ocultas à liberdade. É
com talentos assim, pelos quais
não pagaram pouco, que esses povos contribuirão para fazer do
Velho Mundo uma entidade mais
dinâmica e interessante.
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