São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2004

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NELSON ASCHER

Antes tarde

Anteontem , sábado, dez países ingressaram na União Européia, que já contava com 15 membros. Dois, Malta e Chipre, são ilhas mediterrâneas, enquanto os outros oito pertenceram ao bloco soviético. Três deles, Letônia, Estônia e Lituânia, haviam sido parte integrante da URSS. Os cinco restantes, República Tcheca, Eslováquia, Hungria, Polônia e Eslovênia, participam do que, antes da Segunda Guerra, chamava-se Europa Central. Todos estes nasceram ou renasceram como nações independentes da dissolução, no final da Primeira Guerra, da monarquia Austro-Húngara e, especificamente no caso polonês, também dos impérios russo e alemão.
O conceito, mais cultural e histórico do que propriamente geográfico, de Europa Central fora soterrado pela conflagração de 1939-45, que dividira o continente em duas metades distintas e rebatizara os países em questão de Europa do Leste. Suas afinidades e semelhanças sobreviveram, contudo, a tal redefinição geopolítica, de modo que suas populações continuaram se sentindo mais atraídas pelo Ocidente do que pela Rússia ou pelos sucessores do Império Otomano. Legados essenciais da monarquia dos Habsburgos, como o sistema educacional, seguiram moldando o caráter da região.
O que acaba de ocorrer é, portanto, uma espécie de reunificação oficial dos antigos domínios da cristandade latina, ou seja, das terras católicas e protestantes, pois os países que ainda não se encontram na UE são majoritariamente ortodoxos ou muçulmanos. As principais exceções a essa regra são a Grécia ortodoxa (dentro) e a Croácia católica (fora). Se outras nações ortodoxas, como a Romênia, Bulgária e Sérvia, serão provavelmente aceitas num futuro não muito longínquo, a incorporação da Turquia islâmica é mais duvidosa.
O processo que culminou neste fim de semana se tornou possível graças à queda, há 15 anos, do Muro de Berlim. Reduzidos à pobreza por meio século de desorganização soviética, esses oito novos membros aguardaram pacientemente que os primos ricos os acolhessem em seu clube exclusivo, implementando uma infinidade de regras que lhes foram impostas como pré-condição para tanto. O que conta, porém, é que, em uma década e meia de vida independente, cada qual se revelou uma democracia estável, algo que o conflito balcânico não permitia tomar como óbvio.
Tampouco parece tão óbvio agora como em 1989 que o ingresso lhes traga apenas vantagens. Se, há 15 anos, a Europa Ocidental estava em seu ápice econômico, desde então o quadro mudou. O equilíbrio delicado entre o Estado e a iniciativa privada se rompeu em favor do primeiro, acarretando o enraizamento da estagnação e do desemprego. A metade rica do continente se mostrou, além disso, avessa a reformas necessárias, o peso de uma burocracia transnacional cresceu substancialmente e a política exterior, em particular a relação com os EUA, converteu-se num autêntico pomo da discórdia, contrapondo uns aos outros governos antes capazes de conviverem em relativa harmonia.
Não é segredo que a idéia original da UE consistia na combinação da locomotiva alemã com o modelo político francês dirigindo um número crescente de sócios minoritários. A questão se resume em saber se, com a locomotiva cada vez mais lenta, os novos membros acatarão sem reclamar o ônus de uma administração supranacional que talvez lhes traga à memória ecos do sistema do qual há pouco se livraram. Tudo indica que não, porque, recém-saídos de um despotismo pretensamente internacionalista, eles sem dúvida se apegarão a uma autonomia que muitos europeus ocidentais julgam obsoleta.
A Hungria ilustra bem os problemas e paradoxos envolvidos nesta situação. Importante reino medieval que era, ela perdeu, a partir do século 16, sua independência para os Otomanos e Habsburgos. A revolução de 1848 assegurou-lhe certos direitos na Monarquia Dual, mas, quando se tornou independente em 1918/19, foi ao custo de perder 2/3 do território e metade da população para os vizinhos. Sua independência só durou de fato duas décadas, diluindo-se então na órbita alemã e, em seguida, na comunista contra a qual, aliás, o país se revoltou sem sucesso em 1956.
Hoje a terra dos magiares não somente desfruta de uma autonomia pela qual esperou séculos como retomou o espírito de iniciativa sufocado durante o inverno coletivista. Se há uma coisa que os húngaros não desejam é delegar mais poder do que o estritamente necessário a uma burocracia distante. Nem está entre seus interesses aderir a uma ética laborófoba e conformista e, como se pode inferir do período posterior à queda do Muro, reformas não os atemorizam.
O ingresso da Hungria na União Européia é a correção de uma injustiça histórica que decerto lhe trará benefícios, embora não tantos como trouxe à Espanha ou Portugal. Mas, ao contrário do que se pensa, não se tratará de benefícios unidirecionais. A Europa unificada não precisa dos novos membros menos do que estes dela, e isto por várias razões entre as quais vale a pena destacar tanto a coragem de correr riscos quanto a lembrança recente da opressão e conseqüente apego pela autonomia. Poloneses e tchecos, húngaros e lituanos tiveram a oportunidade de internalizar uma desconfiança saudável em relação ao Estado e de desenvolver a capacidade de ler nas entrelinhas dos discursos oficiais as ameaças ocultas à liberdade. É com talentos assim, pelos quais não pagaram pouco, que esses povos contribuirão para fazer do Velho Mundo uma entidade mais dinâmica e interessante.


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